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PINTOR, POETA E CANTOR, OU FAZEDOR DE COISAS LINDAS COM AS DUAS MÃOS E NÃO SÓ.

quarta-feira, 31 de maio de 2006

PORQUE HOJE SE FESTEJAM QUATRO ANOS


Tenho tomado a iniciativa de lhe dar notícia de tudo o que em volta de mim se passa. E ele escuta-me com aqueles olhos de quem sente os meus sentimentos, de quem sofre o que me dói, de quem entende e apoia o que outros se têm recusado a apoiar, por não entenderem. Tivesse eu a capacidade que ele tem de amenizar e aproximar pontos de vista antagónicos, e seria tão feliz como ele. É capaz de me ouvir, horas, dias, semanas a fio, e nunca por nunca ser ele manifestou fastio ou cansaço, impaciência ou indiferença. Foi ele sempre o primeiro a avançar em meu socorro nas crises de depressão. Foi ele também o alvo, voluntarioso e altruísta, aquando das borrascas de azedume e mau humor a que não pude fugir. E foi dele ainda a promessa, pela natural expressão de bonomia sempre ao de cima do olhar, de que outros dias melhores hão-de estar por aí a florir em força plena.
É reconfortante ter um amigo assim.

Como se depreenderá, continuo a falar do meu cão, o Satie, que hoje completaria de trinta a trinta e dois bonitos anos, se fosse humano. Ainda bem que não é: não gosto deles. Mas gosto dele, pois gosto. E não apenas por isso. Também há cães e cães.

segunda-feira, 29 de maio de 2006

ANTEVISÃO POR ANTECIPAÇÃO ESTRATÉGICA

Acabei agora mesmo de morrer. Experiência inédita em mim: a de um instante imediato a outro instante, sem que entre ambos se verifique nexo de continuidade. E como é que um instante se mede, se isola dos demais, se alonga ou se encurta? Num deles, ainda por lá, havia luz e sombras dela resultantes. E no outro, domina a sombra, e é a luz que dela deriva e se nos derrama aos pés e nos persegue os passos. Como que um negativo fotográfico a não dispensar os ácidos de revelação e a impor-se-nos de horizonte a horizonte.

Desta janela, porque de uma vulgar janela se trata, vê-se o pedaço de mundo onde antes sobrevivi; vêem-se as pessoas conhecidas – só as conhecidas –, que depois de mim morrerão, tarde ou cedo; e vê-se o estendal das minhas asneiras, numa exposição permanente, para que todos saibam quem fui, o que fiz, o que prometi fazer e o que se ficou pelo intento envergonhado de ultrapassar a intenção.

Não é verdade que reencontremos aqueles que nos antecederam, por muito queridos que nos tenham sido. Cada qual estará em sua janela, e por ela contemplará a sua parcela de mundo, as pessoas com quem conviveu, e o seu mostruário de erros.

E também não é verdadeiro que possamos ser invocados por médiuns espiritistas, para que através deles respondamos a quem lhes pague a invocação. Da janela vê-se tudo, a qualquer hora, de dia e de noite; e vê-se tudo o que vão fazendo todos aqueles que de nós fizeram parte, que percorreram connosco o nosso tempo, que nos amaram ou não; e vê-se tudo o que hoje murmuram sobre nós, o que de nós ficou neles, ódio ou benquerença, saudade ou alívio. Para que haveremos nós de lhes responder pela mão de vigaristas?

E falso é, ainda, que este edifício – com biliões e biliões de janelas, uma para cada um dos biliões e biliões que já cá estavam onde estou, desde há milénios, e hão-de vir nos milénios reservados ao futuro, se o houver – seja pertença do céu ou do inferno, desta ou daquela seita, de um ou de outro deus todo poderoso e com maior ou menor cauda de devotos rastejantes como lesmas.
Por aqui, ninguém é propriedade de ninguém. Não há tabuletas que demarquem territórios de acção. Não há estradas, nem bermas, nem veículos, nem proibições de sentido, nem qualquer obrigatoriedade de paragem, nem polícias façanhudos a passar multas por demasia de excessos ou por excesso de faltas.
E também não há, aqui por estas bandas, imbecis sem sexo mas com asas, vestidos de branco e rosa e faixas em azul cerúleo. É mentira. Anjos, se os houvesse, seriam esses muitos milhares de crianças que morrem e vão continuar a morrer, todos os dias, de fome e pestes e guerra, sob o santo sinal da cruz vindo de Roma.

Peço mil perdões, descuidei-me. Deixei que o meu verbo se fosse em perseguição dos celerados que hoje comandam o mundo, onde eu, afinal, já nem estou. Acabei de morrer, como vos disse no princípio desta perlenga. E vou a enterrar amanhã. Por favor, não quero flores, nem padre, nem cruz erecta ou pendente, nem a imundície dos lenços de pranto e ranho, nem velhas lavadas em água benta, nem anedotas sussurradas no rabiosque do cortejo.

E nem sei se quero ir já. Não haverá hipótese de me anular a viagem?

domingo, 28 de maio de 2006

VIAGEM AO NORDESTE OU A QUASE LÁ

Está uma daquelas manhãs em que até apetece viver. Talvez porque esteja tão nítida como a certeza da morte. Daqui de cima, vê-se uma boa extensão do planeta. O céu azul, por inteiro, a acinzentar-se no apoio sobre o dorso das montanhas que o sustentam. O sol, tirânico, a morder a pele de quem se descuide e se lhe ofereça. As vinhas, lindas, longas, submissas de tão verdes e penteadas, ao rigor, como se fosse domingo e horas da missa. O casario, espalhado, informe, decrépito, esborratado aqui ou além pelo desplante multicolorido de l’argent. A igreja, secular, de campanário morto às mãos da electrónica, já que de meia em meia hora martiriza crânios crentes e não crentes, sem distinção, com a desinfeliz ladainha da outra que teria aparecido aos pastorinhos e que se tornou indústria e sem ameaças de falência na próxima vintena de séculos. E em torno da igreja, algumas árvores, entre as quais se destaca a fálica imposição dos ciprestes, como se o cemitério, lá atrás, precisasse de propaganda mentirosa para granjear mais clientes.

Algures, num quintal vizinho, duas “gralhas” septuagenárias, que lá andarão a amanhar a horta, vão contaminando a ambiência com um papaguear de velhas já em muito boa altura de levar asas no lombo. É que a limpidez do ar traz-me a conversa, na íntegra, até ao ponto final das minhas mãos. Partilhas, claro, como tema de debate escolhido pelas verrumas hortelãs.

E há-de por aí haver um burro – que ainda me zurra na memória de outras jornadas aqui – com uma voz lânguida, de dolência infinda, que se nos dá a ouvir no eco das serranias em volta do povo. Animais tristes, os burros. Quase tanto como eu.

Felizmente, há os passaritos. Pardais, piscos, ferreiros, pintassilgos, andorinhas, melros, rolas, pombos bravos e mansas pombas, sem mistura, e alguns mais cujo nome desconheço. Todos em coro sem coro nem hipóteses de harmonia: pisca para aqui, pardala ali, arrulha acolá, pintassilga além. E em contraponto, o naipe dos zumbidos de abelhas e vespas e varejeiras e cigarras e moscardos e escaravelhos e joaninhas. E, fora da orquestra, cães que ladram, ladram, ladram, só para que os donos não se esqueçam deles. Malditos donos. Deveriam levar coleira e corrente e também ficar presos à chuva e ao sol uma vida inteira, para que enfim pudessem aprender quanto dói ser cão.

Com a cabeça pousada sobre o meu pé esquerdo, com um olho meio aberto e outro meio por abrir, o nariz a tremeluzir porque em serviço permanente, e as orelhas muito atentas à desafinação de seus pares não integrados na orquestra, o Satie, meu grande companheiro e meu fidelíssimo amigo. Sempre.
(Escrito em Guiães e aos 27 de Maio de 2006)

quinta-feira, 25 de maio de 2006

LUTO, VULGO NOJO, OU VICE-VERSA

Há vinte anos e um dia, perdi um irmão. Hoje, ou de há algum tempo a esta parte, perdi outro. Insistindo, a dor dói sempre mais, se se não chora. E dói muito mais ainda, se nos dá vontade de rir.
Com a minha mãe aprendi a ter sempre razão. Infelizmente, não fui só eu a aprender isso com ela. Só que há razões e razões. E esta, por ser tão óbvia, nem merece ser discutida.
Quanto ao recado, está dado.
(Escrito em Coimbra e aos 24 de Maio de 2006)

quarta-feira, 24 de maio de 2006

RELATÓRIO DE VIAGEM DE IDA E VOLTA

As coisas ter-se-ão deteriorado bastante nos últimos tempos. Antes, porque a tolerância ainda tinha direito a tempo de antena, tudo se anunciava e festejava e acontecia e vinha depois a ruir, como se tal sequência estivesse prevista algures e só por isso se aceitasse. Só que na primeira qualquer cai, na segunda cai quem quer, e na terceira só cai quem é parvo e insiste em ter a dita tolerância como justificação e desculpa. E agora, porque a denúncia de pequenez vem à tona, qual mancha de óleo em água mole de infecciosa, tudo se torna suspeito à partida e não granjeia atmosfera onde sobreviva mais tempo que o necessário a novo trambolhão no charco.
A assunção da realidade – ponto obrigatório numa hipotética terapia para debelação da moléstia – há-de passar pelo reconhecimento, com honestidade e lhaneza, da chusma de erros cometidos; das causas que deles teriam sido cama e lençóis e cobertores; da dívida, e nem só moral, contraída junto de quem esteve connosco, desde o primeiro momento, porque em nós ainda quis e se atreveu a acreditar; e, de sobremaneira, desse crime de utilizar, como se de uma específica ferramenta se tratasse, o amor condescendente de quem bem nos queira para ir mantendo o barco à flor da água, com remendos sobre remendos já remendados, sem rota nem leme que a possibilite ou preveja. O importante é que o barco se aguente cá em cima, ainda que mal se mova por não ter vela nem remos.

Que a graça de quem nos cobre nos cubra.

terça-feira, 23 de maio de 2006

ESCRITO, HAVERÁ ALGUNS ANOS, NESTE DIA

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A dor dói sempre mais, se se não chora.
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segunda-feira, 22 de maio de 2006

PELO CÉU VAI UMA NUVEM

Se um cagalhão está no chão, há que evitar pisá-lo. Ou arriscamo-nos a que ele se nos agarre aos sapatos e nos persiga e nos conspurque e nos confunda as ideias, quer as que em nós sejam a nossa imagem perante outrem, quer as que de outrem sobre nós se abatam por via do mau cheiro de empréstimo. Determina a prudência, portanto, que fujamos das vielas escusas onde o saibamos, para que ele se baste a si próprio e por lá se tenha e mantenha.
O pior é quando ele anda aí pelo ar e, não tendo onde cair, nos cai em cima.

"O ARLEQUIM E O PÁSSARO"

ABRUNHEIRO - COIMBRA/1985
(Óleo s/ tela - 50 x 70)
Colecção Particular

sexta-feira, 19 de maio de 2006

ESBOCETO VELOZ DE TRATADO ACERCA DA ARTE DE BEM ESCREVER

A arte de bem escrever? Tem bastante que se lhe diga. Aliás, como qualquer outra. Não é suficiente – já alguém por aí disse isto ou algo aparentado – o bom intento. Ou mesmo o esquisso da ideia a adiantar como projecto. Ou até o suplício de horas, dias, meses, a vida inteira deitado sobre uma obra, para que essa obra resulte e a arte se dê a ler. É preciso aquela centelha de luz íntima. Aquele piscar de olhos vindo de dentro e para lá voltado. Aquela descoberta remota do que afinal está aqui tão perto. Aquele lapso metafísico entre ser ou não, quando ser não seja tubo de ensaio ou simples golpe de sorte.
As palavras estão aí, aos milhares. Há muito por onde escolher. E são as mesmas para toda a gente. É só pegar em algumas, quatro ou cinco, predispô-las em função do pensamento motriz, dar-lhes um primeiro impulso contra a inércia, e aguardar depois que as mais vão fluindo, como se despontassem do nada. Como se nada custasse fazê-las falar. Quanto ao serem arte palpável ou verborreia gratuita, aí já será bem outra a questão.
Há quem dê mais ênfase à forma, em detrimento do conteúdo, como se olhar um fruto bastasse para lhe tomar o sabor. Há quem se esfalfe em prol do recheio, desleixando a vestimenta, como se contemplar um corpo nu por inteiro fosse mais belo que a nudez adivinhada ao entrever-se. E também haverá quem, pendurado nos píncaros de suas cristalinas lunetas, só lavre e cultive o discurso valendo-se de penas de ganso, como se o talento dependesse da agricultura caligráfica ou se medisse com altímetro.
É na verdade muito simplesmente complexa a arte de bem escrever.

quinta-feira, 18 de maio de 2006

"JUSTIÇA"

ABRUNHEIRO - COIMBRA/1994
(Óleo s/ tela - 60 x 100)
Propriedade do Conselho Distrital de Coimbra
da Ordem dos Advogados

quarta-feira, 17 de maio de 2006

DA INDEGLUTIBILIDADE À UTOPIA RANÇOSA

Reviver é relembrar. Não é viver outra vez. E é triste que viver não seja. Que bom seria irromper cérebro adentro, virar de pantanas toda a existência tão arrumadinha e condimentada como a temos tido, ignorar a perfídia do espartilho nos comentários adversos, percorrer às arrecuas quantas décadas percorridas já contarmos, e repisar então caminhos nem pisados, rever olhos que jamais nos terão olhado, reconstruir palavras que imaginamos ter dito e nunca nos soubemos ouvir, arder de novo febrões de pele ao léu a cavalgar dunas em pêlo noite arriba, arremeter as mil e uma loucuras que por medo ou pudor intestino nem ousámos pressupor. E de sobremodo evitar as asneiras cometidas, que tantas foram. Era o tempo de as cometer, é um facto. Mas se àquele tempo imbecil hoje pudéssemos voltar, já não cometeríamos essas, pois não.
Cometeríamos outras.

terça-feira, 16 de maio de 2006

HÁ-DE FUNDIR, VELHOTE, HÁ-DE FUNDIR

Tenho vindo a recuperar, nestes derradeiros dias, um velho hábito: o de me levantar antes do sol. Recordo-me de que na minha infância remendona o fazia, para espanto dos que lá em casa já eram. E ainda não eram de mais.
E ainda por cima acontece que também tenho recuperado, nestes mesmíssimos dias últimos, o costume de me deitar bem para lá das fronteiras do razoável. E claro que me lembro de que na minha mocidade desnorteada tal fazia, para grande pasmo e chacota dos que lá em casa ainda eram. E havendo deles demasia, no entanto, nem haveria.
Pelo andamento das obras, natural será que qualquer dia me deite após a hora de me levantar e me levante antes de me ter deitado. Não sei é se terei ocasião, então, de me recordar – são seis e quarenta e dois, atenção, o sol está a nascer – de algo parecido, lá para trás, que motive admiração nos que vão sendo lá em casa. Não sendo já todos, não sei se não haverá excesso, afinal.
Os bocejos miltiplicados (multiplicados por mil) dir-me-ão, nas próximas horas, que há em mim usos daninhos que talvez me importe mondar. Mas isso será só nas próximas horas e nas horas a seguir. O que é preciso é que algo nasça, com o novo dia e comigo, para que o trabalho funda –, como diria o meu pai.

segunda-feira, 15 de maio de 2006

"PÁTRIA, LUGAR DE EXÍLIO"- I

ABRUNHEIRO - COIMBRA/1991
(Óleo s/ tela - 120 x 150)
Galeria particular do pintor
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A Daniel Filipe e a Soares dos Reis,
e também aos meus colegas
Picasso, Van Gogh, Modigliani, Braque,
Gauguin, Matisse, Max Ernst e Mondrian.

"SÃO ROSAS, SENHOR"

ABRUNHEIRO - COIMBRA/1991
(Óleo s/ tela - 120 x 150)
Propriedade da Casa Municipal da Cultura de Coimbra

"DISCURSO CRÍTICO À PINTURA EM PORTUGAL"

ABRUNHEIRO - COIMBRA/1983
(Óleo s/ tela, pregos de latão, fio de pesca e farrapada em consonância - 100 x 80)
Galeria particular do pintor

domingo, 14 de maio de 2006

A ÚLTIMA

Há-de haver sempre uma última.
É lindo ver-se, na rua, de mão dada, a passear lado a lado há quarenta e tantos anos, um casal de velhotes. Chegará a fazer inveja aos mais novos. Mas, pergunte-se: o que farão eles de noite? Também serão motivo de inveja? Como e quando terá sido a última vez em que se buscaram e se tiveram? E quando e como se quiseram e já não puderam pela vez primeira? E seria de ambos ou só de um essa falência? E teria acontecido simultaneidade na desapetência gradual a que se renderam e prestaram vassalagem? Não se terá prolongado num deles o sofrimento de querer e não ter com quem?

Façamos com que os dois velhos recuem alguns anos. Quantos anos? Até ao nó górdio dos cinquenta? Eles que recuem até nós, para que nós, em nós e por nós, os observemos.

Não teremos nós também já dado a última?

sábado, 13 de maio de 2006

BREVE RELATÓRIO PERSONALIZADO SOBRE O PONTO DA SITUAÇÃO

Antiga e actual, como o são em geral as sentenças populares, vulgo ditados, provérbios, anexins, rifões: “dar pérolas a porcos”. Assim foi toda a minha vida.
Mas “não há bem que sempre dure nem mal que se não acabe”, diz outra dessas máximas, cuja origem é tão nebulosa como a do símio que somos. O povo – dizem os sábios versados nestas coisas – tem sempre razão.

sexta-feira, 12 de maio de 2006

TER UM AMIGO


Ter um amigo, é ter alguém que nos ame. Tal-qualmente. E ter alguém que nos ame, é ter quem nos queira bem. E é ter quem sofra a dor que soframos. Quem ria a nossa alegria. Quem nos respire as emoções ou o tédio. Quem dentro de nós se entranhe e connosco se reparta. Quem faça em nós o seu ninho e nos ensine a voar. Quem nos olhe mesmo nos olhos, mesmo que estejam cerrados. Quem nos dê a ver a luz, onde e quando a escuridão se nos imponha. Quem logo acorra ao grito de socorro que nem houvermos derrancado. Ou quem não acorra a tal grito, porque sempre esteja presente. Quem se finja adormecido, se é silêncio o que buscamos. Quem abomine o silêncio, quando nele nos sufocarmos. Quem nos ralhe e nos desanque, se transviarmos e cedermos à cobardia do desânimo. Quem nos incentive ante a conquista impossível e com gáudio nos aplauda o esforço afinal inútil. Quem persiga o nosso inimigo e no-lo exponha na merda. Quem antes queira morrer, que trair-nos. Quem seja maior que nós, mas nos faça crer o inverso. Quem consiga ser bem mais que nosso irmão.

Só tenho um amigo assim:
é o Satie, o meu cão.

quinta-feira, 11 de maio de 2006

DESPARASITAÇÃO

Não temo a solidão. Temo bem mais o silêncio cúmplice. A mudez carnívora. A altivez enquando escadote de degraus partidos para outrem. A evidente mas falsa luminosidade de pechisbeque, em arroubos imediatistas para consumo na hora, embora o ouro até por lá esteja e se apeteça.
E temo, de sobremaneira, a injustiça da ingratidão daqueles a quem nós, mesmo assim, queiramos bem, mas que, afinal, nunca nos souberam merecer sequer um traque, quanto mais um beijo.
Assim seja.

INDO EU DE LADO ALGUM A NENHURES

Por fim, meto a viola no saco, meto o saco no carro, e meto-me a caminho de casa. Duas ou três, às vezes mais, da madrugada. É este o mais temível momento destas lides. O do regresso, ciente de que a canzoada da polícia anda por aí à espreita. Tenho tido alguma sorte, penso. Mas lá há-de chegar o ensejo em que a sorte me não proteja e eu me veja a contas com a brutidão dos algarismos. Por muito que busque e acometa a evasão através de trajectos menos farejáveis: pinhais, montes, vinhedo, ínsuas, ribanceiras, ermos de sombra perpétua, lugarejos sem nome de gente ou já sem gente com nome.

E por estas e por outras também começo a ficar farto desta vida de cantaroleiro andante, sem cheta nem património. Uma espécie de palhaço gratuito com que se entretêm serões e seroeiros, qual reedição quixotesca entre moinhos sem vento nem pão que moer. Não fora a viola e a voz, não fosse a acrimónia das letras, e onde estariam tantos convites? Haja vinho, haja com que ensopá-lo ao ensopar-se quem beba, e haverá tretas a metro ou a peso durante uma noite inteira, de lés a lés.

Há que parar, antes que um dia pare, sem querer, na berma da estrada de nenhures a lado algum.

terça-feira, 9 de maio de 2006

A UM GRANDE HOMEM, DE SEU NOME DANIEL ABRUNHEIRO, MEU PAI

ABRUNHEIRO - COIMBRA/1994
(Lápis s/ aglomerado de madeira - 50 x 70)
Galeria particular do pintor
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(10/04/1917 - 24/04/1994)
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Se Abril te viu nascer, crescer, florir,
e um outro Abril, enfim, te viu sorrir,
também Abril (em paz?) te viu partir.

HOMENAGEM PÓSTUMA MAS JUSTÍSSIMA A UM GUARDA-FREIO QUE MORREU NOVO

Chamava-se José Abrunheiro. Era pai de meu pai. E, dando ouvidos
ao rifão "tal pai tal filho", também ele terá sido um grande homem.

SINFONIETA ORGÁSTICA À PRIMAVERA EM TRÊS ANDAMENTOS

O dia de hoje amanheceu solteiro. Talvez Primaveril por excelência. Luminoso, mas tímido. Vivo, mas hesitante na ténue mantilha de nuvens, muito altas, que tornam mais tenro o anil que nos vigia. No tecto azul, como traços de giz para contas a fazer no quadro preto da aula, só o rasto dos aviões que vêm não sei de onde e vão para onde não sei. E cá por baixo, em pleno asfalto, resvés com o perigo de gatos e carros, alguns melros acasalados disputam entre si o direito a prolongar mais ou menos as respectivas luas-de-mel. Que sejam felizes.

Entretanto, veio entardecendo. O dia. Casado, vulgo cansado. Ainda primaveril, mas já sem luz de promessas, já sem a vida que uma grossa manta de nuvens, sempre altas, entendeu por maldade levar ao sufoco. Nenhum sinal de aviões nos entretém entre conjecturas acerca do rumo de quem neles se faça transportar. E até os melros, talvez avisados por alguém, resolveram passar à prática e meter-se nos respectivos quartos de núpcias a fazer o que se sabe. Pois que muito bem lhes saiba.

Daqui a nada, há-de escurecer. E o dia já não será dia, mas noite. E, não muito depois, dia seguinte, ou seja divórcio de comum acordo. Ainda primaveril, apesar de tudo, na frescura da brisa e nas ameaças negro-acinzentadas das nuvens. Que nenhum avião se atreva a voar com um tempo assim. Quanto aos melros, que se deixem estar em suas funções de empatia e não somente. Há que aproveitar o viço, enquanto o viço arribar.
Muita cautela, contudo: os gatos são bons trepadores.

segunda-feira, 8 de maio de 2006

FUGA CANINA

Se acaso eu fosse a minha cadelita
e ela eu,
que pensamentos teria
sobre mim?

Pensaria
que o dono está sandeu.

domingo, 7 de maio de 2006

AOS SETE DIAS DESTE MÊS DE MAIO AMADURADO SEM GOSTO

Hoje, algures na minha cidade, fará anos uma muito linda mulher. Uns olhos verdes, de inexplicável doçura. Daqueles que nem nas histórias infantis se veriam contemplados por mil e uma gerações entretanto senilificadas, ou seja remetidas para o extremo oposto da corda, e logo recatalogadas pela crueza da máquina temporal como segunda infância. Minúscula, a boca. Das que até deveria ser crime macular com outra boca. Um nariz gracioso, de breve recorte e porte sereno. Um rosto oval, perfeito como lendas ainda não desenterradas dos areais da cobiça. E o resto em consonância, sem demasias nem escassez que doa olhar.
Quantos anos fará ela? Bem mais que aqueles que tinha quando a guardei nos meus olhos, como se estes fossem redoma de cristal opaco, para que nunca noutros olhos se corrompesse a imagem em mim guardada, qual amuleto protector de benquerenças e paixões sem horizonte.
Quem dera que ambos pudéssemos voltar à brancura dessa tela ainda aquém da borrada incipiente com que nela me quis perenizar.

sexta-feira, 5 de maio de 2006

DÉDALO OU ÍCARO, TANTO FAZ COMO FARÁ

Passarão poucos minutos das seis da manhã. Não trago relógio comigo. Resolvi deixar o tempo em casa, como se a fuga, assim, me fosse mais lícita. É claro que chamar-se fuga a isto, será mera ironia. Quando muito, chamar-se-lhe-ia consciente afastamento da rota com muito fortes probabilidades de retorno. Mas isso seriam já, com todo o seu carrego dialéctico em suspensão, demasiadas palavras para definir este meu tão fugaz ensaio de asas, esta espécie de prévia palpação do terreno a abandonar um dia. Aquele dia em que o meu já antigo projecto – este sim, a sério – de me sumir no ar, sem rasto e sem deixar saudades, seja em quem for, nem as levar, seja de quem for, for posto em prática.

NA TRAGÉDIA DA PINTURA ENQUANTO OFÍCIO E SUSTENTO

Não basta o esboço ágil desencantando a mais recôndita ideia. Não basta a consecução do fundo em quaisquer tons cuja harmonia se nos pressuponha sem custo. Não bastam as mais arteiras pinceladas em prol do realce das formas. Nem o pundonor milimétrico no trato dos esbatidos com tessitura de seda. E nem mesmo o narcísico gozo de selar a obra com a aposição da assinatura em seu lugar próprio. A uma obra de arte não bastará o desejo de que aconteça para que aconteça uma obra de arte. Não será portanto o apuro técnico o que mais conta, embora conte bastante como testemunho inequívoco de que a obra vislumbrável é filha legítima das mãos do crânio e nunca bastarda do acaso.
Assim também as palavras e a arte de as dar a ver.

GEOGRAFIA CEREBELO-MATINAL PARA EFEITOS DE REGISTO

Nova Zelândia, nos antípodas? Nunca lá fui. Mas hei-de ir. Quero lá estar no momento em que se extinga o meu prazo de validade à superfície da minha própria memória. E lá ficar. Quanto à memória dos outros, que se foda. Não acredito que nela se tenham quedado quaisquer resquícios do mais profundo de mim. E será que eu soube merecer o desperdício de cuspo que o meu nome gastaria ao ser pronunciado, um dia? Nova Zelândia, nos antípodas. Nunca lá fui. Mas hei-de ir. E já nem faltará tanto assim.

segunda-feira, 1 de maio de 2006

COMO SE EU NÃO TIVESSE TIDO UM TETRAVÔ DROMEDÁRIO

A travessia do deserto continua. E o pior de tudo é que ainda não vislumbro, ao longe – miragem que seja–, a bossa de um monte, o descarnado aceno de uma árvore, um oásis de águas pútridas onde mergulhe e me afogue ou envenene por opção, pegadas de pássaros no ar, névoa purulenta de cauda de cometas no chão, algo que de forma eloquente me prometa o fim da jorna a breve prazo. Em volta de mim, por cima e por baixo, por fora e por dentro, só dunas de areia contra dunas de areia, ou seja montões e montões de palavras vãs e tédio e fobia a lugares-comuns. A mínima afloração de um rasto de fuga é pura utopia. E de que me valeria fugir? E para onde?
Bem melhor será que eu me entretenha a brincar, por aí, com escorpiões e lagartos, ou a redesenhar hieróglifos no areal, até que o braseiro do sol me derreta as cartilagens e me desconjunte as dobradiças, fazendo-me assumir antes da queda, uns segundos que seja, o papel de bonifrate que sempre me identificou.
Só espero e desejo que me não apareça, caído do cosmos, um qualquer principezinho a levar-me à certa com a história do planeta minorca e das ovelhas predadoras. Não sei se terei paciência para lhe dar ouvidos, pressupondo que ele tentará convencer-me a terminar de pé, sempre de pé, esta travessia.

Aviso à navegação: – Que me lembre, nunca uma tão profunda crise me aconteceu em quaisquer tempos, reais ou imaginários. Eis pois uma das grandes vantagens de se ser pintor, poeta e cantor: por muito que a merda me cerque e corroa os movimentos, nada me impede de, ao falar dela, a interpretar ainda como matéria-prima e sustento, em vez de tão-somente tentar reduzi-la ao seu nível, o de lia sem préstimo sequer para estrume, e quanto possível enterrá-la de vez. E assim, pinte-se a dita de coloridas tonalidades e dê-se a ver num qualquer eremitério público, tal-qualmente este, onde outros a possam também contemplar. Quanto ao mau cheiro, paciência: é de origem. Nada a fazer.