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umbilicativo

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PINTOR, POETA E CANTOR, OU FAZEDOR DE COISAS LINDAS COM AS DUAS MÃOS E NÃO SÓ.

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2007

AO ZECA, COM AMOR

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morreu há vinte anos quem ainda não se sabe se terá chegado a viver

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2007

"CATITA" (excerto)

Cabia-me num bolso do casaco, quando ma deram. E embora tivesse triplicado ou quadruplicado o tamanho, como se sabe ser natural, até oito meses depois, nunca teve mais que um palmo de altura ou sequer dois de comprimento. Era de facto muito pequenina e graciosa, muito ternurenta, muito desinquieta, castanho-amarelada e branca e o pêlo sedoso e longo a varrer o chão atrás dela, uns olhos cuja inteligência trespassava. Era linda, linda, linda. Chamava-se Catita.
Muitos e muito bons momentos de puro prazer lúdico – digamos nós, na falta de melhor definição – ela nos proporcionou ao longo dos tão curtos onze anos em que a vida lhe sorriu. Algo, uma qualquer dessas maleitas que ao abalar nunca vão sozinhas, no-la arrebatou para o céu dos bichos, esse céu bem conservado no baú da memória, onde só se guardam entes queridos, como cães, gatos, passaritos, brinquedos que nem tivemos mas sonhámos ter um dia, livros lidos antes de aprender a ler. Ou até gente, por vezes, rostos da primeiríssima infância, de que apenas nos ficariam alguns esboços apressados e sem rigor, pequenos pormenores de pasmo feitos, sinais, vozes, cheiros.
Aquela cadelita conseguiu impor-se-nos de tão vincada maneira, que ainda hoje se mantém viva entre nós, e entre nós corre e salta e foge e brinca, tendo por isso o seu lugar garantido nas conversas de todos os dias, como se se tratasse de alguém que tivéssemos amado para lá do ponderável como racional e até amámos, neste caso, muito além e acima de outros valores que houvesse a ponderar–, e de súbito, em plena verdura, nos deixasse assim, sem apelo, quando tantas alegrias e mimos ainda mereceria ter de nós para connosco repartir.
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"CATITA"
Abrunheiro-Coimbra/1995
desenho a lápis s/ papel - 20 x 30 cm (colecção do pintor)

domingo, 18 de fevereiro de 2007

MAIS AUTO-EXPLICAÇÃO QUE RELEITURA DE "AINDA DA LISONJA À LEI DOS GRAVES"

"AINDA DA LISONJA À LEI DOS GRAVES"
Abrunheiro-Coimbra/1994
óleo s/ tela - 60 x 100 cm (colecção particular)
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Do pântano de outrora, resta a secura do chão, todo ele gretado, a toda a extensão que os olhos persigam. É a vileza do deserto denunciada há muito. Ou será a ameaça, antes promessa tão vicejante como o cristal das risadas infantis em liberdade, a consumar-se. Ou ainda a sensação inimaginável de cócegas, desde sempre conservadas na lembrança, se nos fosse concedida a puerilidade de pisar e repisar esse mesmo chão definido por medonhas gretas com os pés a nu, o que equivale a dizer tão descalços e libertos de calos como à nascença.
Qual máscara aquém da queda iminente, a tela devolve o dia à noite e o sol é a lua. Mas persiste a sombra estendida na terra, que nem lençol por demais puído a corar no areal. E mais uma vez em pose (porque é já recorrente, ainda que obscura, esta evocação dos versículos da fruta roubada e mordiscada pelos primatas iniciais), a nudez personificável como hipótese de tentação, e tão ali à mão, que se lhe toca.
Ajuste-se então o ludíbrio à ficção da realidade, e o deserto tornará a vicejar para repouso, ou repasto, de quem nas lendas acredite ainda.

sábado, 17 de fevereiro de 2007

PASSANDO EU PERANTE A "SAGA DO OVO DO CUCO ATÉ QUE NÃO"

"SAGA DO OVO DO CUCO ATÉ QUE NÃO"
Abrunheiro-Coimbra/1994
óleo s/ tela - 60 x 100 cm (colecção particular)
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O cuco, passaroco atrevidão, espia o ninho dos outros e espera a hora certeira para que o golpe dê frutos. Vendo abalar os passaritos para o mercado, ele e ela, o cuco invade-lhes a intimidade, onde dormitam os futuros filhotes ainda em ovo, e no meio aninha também o ovo dele, bem maior que os manos de amanhã. E quando regressam a casa, das voltas em busca de mínimos nadas com o rótulo de indispensáveis na preparação do quarto, tendo em mira o parto a breve trecho, ela e ele, os passaritos, enlevados pela expectativa, quase não dão conta de que entretanto teria aumentado o número de bicos pedinchões previsto no plano, e lá prosseguem a azáfama para que o espaço, escasso, dê para tudo e para todos.
Alguns dias depois, como é sabido, nascem os rebentos, penugentos, e começa a guerra. Sempre esfaimados, de goelas escancaradas para as nunca suficientes migalhas que os pais tentam repartir por cada qual, os nascituros gritam e empurram-se e agridem-se, procurando chegar primeiro ao pão, materno ou paterno, tanto faz. E é nessa altura que a injustiça da lei dos mais fortes ganha peso e faz impor a prepotência, sem contemplações, sobre os menos bafejados pela sorte, cujo fim se adivinha a qualquer momento: o matulão atira os irmãos de berço da janela abaixo, e continua, sozinho, a usufruir da tolerância dos pais, adoptivos sem querer.
E um dia virá em que estes, ele e ela, os passaritos, se verão expulsos de casa pelo glutão, cuja tamanhura duplica a dos hospedeiros. E não muito depois, gordo e luzidio, há-de ser o fraticida a fazer-se à vida e a continuar o exemplo dos pais biológicos, indo largar o ovo em casa alheia, para que alguém o sustente.
Assim também o homem (um cuco em versão sofisticada), em relação à mulher. Embora a culpa seja da cobra que os fez mordiscar a maçã.

terça-feira, 13 de fevereiro de 2007

"ENSAIO DE MORTE EM VIDA PARA EFEITOS DE LOGÍSTICA"

"ENSAIO DE MORTE EM VIDA PARA EFEITOS DE LOGÍSTICA"
Abrunheiro-Coimbra/1994
óleo s/ tela - 60 x 100 cm (colecção do pintor)
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Cuidamo-nos, por vezes (quem se cuida), com a ponderação da ideia que de nós tenhamos, como se nos embrenhássemos numa inspecção à máquina mental que nos traz de pé, nos empurra, nos dá de comer e de beber, nos presenteia com mimos de índole multivária, e nos impõe aquele mínimo de normas comportamentais, cujo não cumprimento se traduziria em catástrofe de impensável amplitude.
Sopesamos então, com alguma honestidade admitamos –, aquilo que por desfastio se designa por defeitos e qualidades, tudo tentando para que nenhum dos dois pesos orçados esmague o outro e logo se afirme como imperativo no esboço de auto-retrato.
Conseguimos mesmo admitir, de dentro para dentro, sem testemunhas nem secretismo de escutas, quanta malevolência e quantas aberrações e quantos vícios daninhos sejam em nós residentes, hóspedes antigos, sem registo de entrada nem saída previsível.
Somos capazes, inclusive, de denegrir em excesso a imagem com que em qualquer parte nos façamos representar, antevendo situações cujo desenlace final, horripilante, nos teria como protagonistas, agentes do mal por contrato assinado na própria pele, facínoras sem ascendência humanóide garantida.
Valer-nos-á a quase certeza de que em nós também subsiste um lado bom, se bem que sujeito à erosão da hipocrisia, quantas vezes tomada como caminho de sentido único, aquele onde estivermos, para que de nós não nos esqueçamos na hora do prémio.
Cuidemo-nos, pois (quem se cuide), em não ponderar de mais.

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2007

MADRIGAL A RELEITURA JÁ QUE O PASSADO NÃO É SENÃO FUTURO INVERSO

"GOTA A GOTA EM CHÃO MOLHADO"
Abrunheiro-Coimbra/1994
óleo s/ tela - 60 x 100 cm (colecção do pintor)
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Espreitando por cima da muralha fronteiriça, o leão imperial, a besta sagrada, presa e predador, cativo e carcereiro, algoz e sentenciado ao garrote universal. Calça luvas de couro e tem o tempo com ele. E tem também, por detrás, a servir de pano de fundo, um céu verticalizado e pintado de acordo com o espectro solar, esse impreciso sortilégio das cores do arco-íris. Quem sustentará a corrente de ferro que lhe retém os bramidos e a sanha em cima do muro?
E aquém, a verdade. A miséria lançada ao assalto, por escadas de pau, contra o ferro previsível. Há que tentar. Há que avançar. O mostrengo dormita com os olhos abertos. Do fundo dos séculos não vale a pena esperar por grandes lições. São vícios tão sórdidos como mordiscar o sarro das unhas em busca de ideias.
O rio, longilíneo, ainda que verdilhento de fundões e limos, mal dará vapor de água a quem sede tenha. E o chão está gretado. A vida parou
na berma da estrada. Em frente, no meio de incógnitas mais espessas que o desvão da noite visível por olhos cegos, há-de abrir-se, ou não, a rota a perseguir através do rasto delineado por algum cometa. E de lá de baixo, ou seja de trás, do fosso da merda que me fez nascer sem ser consultado, a corda está podre e a escada é mentira.
Vem lá o comboio. Pousai o ouvido na linha, que logo o ouvireis.

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2007

"DO ANTES AO APÓS O MEIO FICA", EMBORA POUCO TENHA A VER O CU COM AS CALÇAS

"DO ANTES AO APÓS O MEIO FICA"
Abrunheiro-Coimbra/1995
óleo s/ tela - 60 x 100 cm (colecção do pintor)
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Nasci num beco. Parente próximo de qualquer beco, sem saída e sem argumentação que o desculpe. Ora, desse eu ouvidos à pantomina de premonições e derivantes, e talvez me convencesse, neste entretanto, de que o beco onde hoje me sinto e julgo ver já me fora anunciado à nascença. Mas não convenço. O beco de agora não é físico. Não tem paredes de adobe e salitre, nem chão de calçada a desfazer-se no meio de valetas malcheirosas. E se disto nele houver, bem como postigos à coca de quem passe em frente, será uma consequência de mim. Sou eu que escorro por tais valetas, que nelas me lavo e purifico e me dou à vilanagem de nelas me saber estendido entre vómitos, como estes, de olhos e mãos à venda a quem mais der. E também terei sido eu, só eu, que lhe dei esta arquitectura de degredo entre evasões desperdiçadas e solícitas penas de prisão intemporal. Mas para quê explicar agora o que explicação nunca teve, não tem, nem terá nunca? No fim de tudo, varridos os restos, este beco serei eu: pedinte e esmoler, cantaroleiro de esquina e público enfadado, palhaço e espelho onde o riso alcance forma de eco e alguém se ria sem saber de quê.

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2007

"DO SÍSIFO MILENÁRIO AO QUARENTÃO" EM REVISITA TÃO TARDIA COMO TODAS

"DO SÍSIFO MILENÁRIO AO QUARENTÃO"
Abrunheiro-Coimbra/1994
óleo s/ tela - 60 x 100 cm (colecção do pintor)
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Sísifo, rei dos Coríntios, era um putanheiro daqueles. E está a pagá-las bem pagas, se está, ainda hoje, passados milhares de anos. Logrou dar a volta à cabeça de Egina, ninfa deslumbrante, filha de Asopo, e a este mandou recado a dizer que o raptor fora Júpiter, patrão todo poderoso do bordel olímpico. Retaliando tanta insolência num tão insignificante como atrevidote reizinho, o deus dos deuses recorreu aos préstimos de Tánatos, a morte, ordenando-lhe que de imediato desse destino ao garraio, levando-o para bem longe do reino dos vivos.
Contudo, porque era arteiro e desembaraçado, o rei de Corinto não se atemorizou perante as vestes obscuras de tão sinistra entidade, e teve ronha e engenho para ludibriar o lacaio divino, conseguindo mesmo o prodígio de o meter numa masmorra e de assim impedir que alguém, quem quer que fosse, morresse no mundo durante anos e anos.
Queixou-se Plutão ao irmão, porque a barca de Caronte apodrecia no cais, não tendo almas passageiras que lhe dessem movimento e razão de ser contemporizadora da sua manutenção. E Júpiter fez questão de sossegar o mano, dono das trevas, obrigando Sísifo a libertar Tánatos e a submeter-se sem detença à condenação anterior.
Preparando-se para acompanhar o verdugo até aos infernos, rogou-lhe uns minutos mais para dizer adeus à sua esposa, a quem recomendou, ao ouvido, para enorme estranheza daquela, que o não enterrase após a morte, e ela, obediente, desvelada, amantíssima, fez grande questão de cumprir dele a derradeira vontade, expressa e selada num último e quase infinito beijo.
Já bem no centro da Terra, o lugar escolhido pelos deuses para sediar a fornalha do Inferno, entre magmas ardentes e fumarolas de enxofre, roía-se Sísifo entre lamentos e injúrias à esposa que lhe não prestara quaisquer honras fúnebres. A pérfida companheira nem sequer tivera o esmero de lhe dar sepultura e verter uma só lágrima. Urgiria, pois, o regresso à superfície, se possível, a fim de que se soubesse punida tão inultrapassável prova de ingratidão. E tanto gemeu e barafustou junto do deus guardador dos mortos, Plutão, que atingiu os seus propósitos, sendo enfim autorizado, por muito breves dias, a subir ao mundo dos viventes. "Por muito breves dias"–, jurara ele, Sísifo, com contrição a manifestar-se entre esgares patéticos, ao carcereiro.
Logo que viu o Hades para trás, ou para baixo, rumou até longes terras, e resolveu que nunca mais voltaria a enegrecer a vista naquele crepúsculo infernal de dolorida memória. “Viver é lindo”– ululava ele aos ecos de quantos desfiladeiros e montanhas calcorreava à toa.
Volvidos muitos anos sobre a fuga, começou a alquebrar-se e a sentir que já não tinha forças para prosseguir a luta contra os deuses, contra a morte, decidindo assim render-se e assumir a sua sina. E de novo se viu transportado chão abaixo até às catacumbas do mundo.
Plutão, incapaz de perdoar o ludíbrio de Sísifo quando ainda jovem e pleno de viço, desta vez acautela-se e impõe-lhe uma função em que nem um momento de descanso lhe sobeje, coarctando, pois, qualquer ensejo de evasão: empurrar pelo monte acima um penedo gigantesco, que uma vez no cume se lhe furta das mãos e rola outra vez até lá ao fundo, para que o desgraçado volte a descer em corrida e recomece o suplício de carregar o calhau até ao alto. E isto, vezes sem conta, sem outro objectivo que não seja mesmo o de não ter objectivo à vista.

Em idêntica pose, este meu Sísifo quarentão (então), milhares de anos depois, a carregar o tempo em falta e a falta que ele já me faz. E tanto ou mais putanheiro que o Coríntio –, acrescente-se.