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PINTOR, POETA E CANTOR, OU FAZEDOR DE COISAS LINDAS COM AS DUAS MÃOS E NÃO SÓ.

sábado, 18 de novembro de 2006

SE QUERES FIADO TOMA MONOCROMÁTICO OU MENOS

Amanheci cinzento, embora com laivos de sol tímido, triste. Talvez o dia se me recomponha através dos processos habituais em quem ame o amanhecer, cinzento ou rubro, arteiro ou envergonhado. Nada é tão confrangedor como acordar com ideias turvas e não ter um sol capaz de lhes dar cor, contraste, textura, transparência, asas.
Entretanto, o vento, cão e pastor, vai juntando as nuvens em rebanho sobre a pastagem perceptível à distância de meia hora ou nem tanto, como se toda a descoloração infligida não constituísse alimento mais que bastante à turbação das ideias. E chia, o canalha. E faz remoinhos e arabescos no arvoredo, o pedante, garboso do escárnio sem antídoto capaz de o combater e devolver aos primórdios que o pariram.
Eu gosto do vento, todavia. Gostei sempre. Leva-me pela mão até ao feno e aos silveirões dos montes na meninice, até aos carreiros de pé descalço e topadas de faltar o ar, até aos pânicos da noite em que me amanheciam os dias, até ao crime de dizer mal dele por estratagema de recurso ante a ameaça de mudez lida nos ecos.
Quem me dera que o vento também gostasse de mim, quando contra ele levanto os braços num belo manguito à portuguesa, que o mesmo é dizer à Bordalo, senhor do traço e do barro, que não lama, em que à nossa exacta dimensão nos reduziu.

domingo, 12 de novembro de 2006

TEMPO DE SECA E OFICINA EM SERVIÇO PERMANENTE DE DESCONSERTO GRADUAL

A torneira não cede. Nem um pingo. Ainda que lhe abra a goela até ao cu, nem um simulacro de vapor se lhe aspira. E os bocejos, como se a pele da face me requisitasse ferro e tábua de engomar, também não me ajudarão grande coisa. O problema há-de ser lá dentro – penso eu, armado em canalizador remendão, sem chave de bocas nem vocação atestada –, na alma do cano. Milagres não há. Logo, de onde não haja armazenamento prévio, não será lógico aguardar que saia substância. Seja ela qual for, água ou vinho, tretas ou música.
Voltemos a outra hora. Ou intitulemo-nos picheleiros com diploma e ferramenta em conformidade, e atrevamo-nos ao ataque, não suceda entrar ar nas tubagens e rebentar a caldeira. Depois é que nunca mais haverá conserto possível. E mesmo que troque a velha por uma nova, nada do que lá não esteja se fará pingar pela torneira.
A sede prevalece, no entanto. Há que dominá-la, primeiro, e largá-la pela calada à aventura, para que no regresso ela traga alguma peça de caça nos dentes. As leis da sobrevivência a tanto obrigam. O restante a considerar, devido à hora adiantada, é matéria avulsa, sem préstimo que valha o esforço da sofreguidão controlada desde o clarim inicial, qualquer que seja o timbre, seja qual for a potência de sopro.

terça-feira, 7 de novembro de 2006

O PÃO NOSSO DE CADA DIA NOS TRAZEI HOJE NOS DENTES

Pessoas há cuja sensibilidade as leva a tomar como fidedignas as mais inverosímeis histórias, porque elas se alicercem em valores de elevado quilate, tão raros nestes pérfidos tempos que correm e tudo esmagam sem olhar o quê. Valores que não são a caridade, a comiseração, nem qualquer desses cuja magnanimidade só se derrama enquanto houver olhos por perto. Mas que serão a solidariedade, o altruísmo, a bondade de mãos dadas ao pundonor na busca da resolução dos problemas de outrem, e tudo sem a mínima obrigatoriedade de premissas indutoras ou compensatórias garantias no fim. Sobretudo quando esses valores de referência, entre tantos a referir, se tornarem inteligíveis através de paradigmas, que não fábulas com bichos falantes, colhidos ao vivo no denominado reino animal. Ainda por haverá pessoas assim. O meu pai era uma delas.
Lembro-me bem de quando ele nos contou, de olhos incendiados por fantasmagorias benfazejas, a velha história do cachorrito que todos os dias, amestrado pelo dono, ia à padaria com uma saca de pano buscar o pão matinal, arteiro e donairoso por se sentir útil. O padeiro, amigo dos dois, cão e dono, cumpria o combinado, metendo na saca os pães requeridos, que o portador orelhudo levaria para casa.
Até que um dia, quando o cão voltou da missão, o dono reparou que o padeiro se enganara ao contar somente cinco pães e não seis, como teriam acordado. Mas não ligou. Um engano a qualquer um acontece, não fora propositado, decerto. Poderia falar-lhe no assunto, quando lá fosse pagar, e acertariam as contas.
Na manhã seguinte, contudo, também faltava um pão. E no outro dia a seguir e no outro e no outro. O cliente lesado decidiu-se então, e foi falar com o amigo padeiro, que, aturdido, se desfez em mil desculpas, mas negou ter-se enganado e logo ao longo de tantos dias a eito. Que de modo algum. Algo de errado andaria por ali.
Sopesadas todas as hipóteses – o cão era manso e talvez alguém disso se aproveitasse e lhe tirasse um pão por ter fome, por brincadeira, ou apenas por maldade –, resolveram em conjunto continuar o que todas as manhãs fariam, e seguir o animal, de longe, aquando do regresso a casa com a encomenda nos dentes. E assim foi feito.
No outro dia, o cachorro deixou a padaria com os seis pães na sacola, sob a vigilância de ambos, padeiro e cliente, e lá seguiu até casa pelo trajecto habitual. Todavia, ao passar por um enorme silveirão ao lado do caminho, viram-no embrenhar-se nele e nele se sumir durante uns momentos. E também o viram, depois, sair de lá e retomar a jornada, todo lampeiro, abanando a cauda.
Quando espreitaram pelo buraco no matagal, em que o mandarete se tinha entranhado, o que viram eles? Viram um pão, isso viram, a ser devorado com os dentes todos por uma cadelita, magérrima, que por sua vez se veria devorada, por sucção, pelo desespero da ninhada de também esfaimados filhotes agarrados à vida através dela.
Verdade? Fantasia? Que importa? O importante é acreditar sem peias no exemplo dos animais. Ou seja, por exemplo, em nós. Mas pouco.

sexta-feira, 3 de novembro de 2006

TALVEZ POMPA E CIRCUNSTÂNCIA A SOAR EM MARCHA À RÉ

Nem tudo é mau na miséria. De quando ela imperava cá pelas minhas bandas, lembro-me em particular de alguns cheiros. Como o do sabão amarelo nas tábuas do soalho mal acabado de esfregar, com moedoiro de joelhos, à força de escova e nervos. Ou o da roupa lavada e corada ao sol na torreira dos areais semidesérticos do rio. Ou o da broa a sair, quentinha, da fornada semanal. Ou o do café de mistura a fumegar nas canecas esbeiçadas sob a carestia expressa pelas dentuças. Ou mesmo o dos morangos a roubar do quintal vizinho. Ou ainda o dos colchões de folhelho, com algum mijo clandestino a apodrecer-me a lembrança e a votá-la ao degredo. Ou até o que emanava das fossas de improviso, escavadas em terra de outrem, no monte.
E também subsiste a memória de alguns sabores perdidos na voragem de soterrar tais tempos, como o das sopas de pão no sobredito café de chicória com leite, e tudo feito na véspera para lhe apurar o gosto que a manhã devoraria. Ou o das tortas de milho com sardinhas dentro, de quando em vez, na fornada da semana. Ou o das batatas fritas, já frias e comidas à mão da marmita que comigo as transportava. Ou o do pão com banana a substituir refeições, quando sobejavam dentes e faltava o quê a morder com eles.
Ainda assim, com maior ou menor recarga de nostalgia a recolorir os sentidos, puta que pariu a miséria e aqueles que dela tirem proveito.