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PINTOR, POETA E CANTOR, OU FAZEDOR DE COISAS LINDAS COM AS DUAS MÃOS E NÃO SÓ.

terça-feira, 22 de agosto de 2006

EXERCÍCIO DE PARIR UM RIFÃO AO FECHAR A PORTA DA RUA

Uma palavra. Uma palavra lhe bastará para que o assunto se resolva à medida de todos os ouvidos. Até dos mais toscos. Ou mesmo dos que nem sejam senão orelhas. Não uma qualquer palavra, entenda-se. De tantos milhares, que o léxico oficial procurará proteger das invasões a mando do capital, entre outras, uma só terá poderes alquímicos e fará desencadear todo o processo de transformar a vileza do cobre em ouro de lei. Ou, neste caso, de tornar em eloquência a verborreia.
Todavia, onde está ela? Onde se oculta esse código minúsculo de dois ou três fonemas, cinco ou seis, ou mesmo um único? Como muito bem se calcula, ocultar-se-á nesse vertiginoso feixe de ondas íntimas entre o caleidoscópio encefálico e a laringe, o palato, a língua, os dentes, os lábios, as mãos, os olhos. Como dar-lhe voz e pernas? Como libertá-la dos silveirões da memória? Como colhê-la entre as urtigas do olvido e atirá-la pelo ar para que seja pedra e parta vidraças a sério?
No momento em que descobrir de que palavra se trata, terá resolvida a questão fundamental. Mas também terá injustificado a razão de ser da procura a partir de então. Melhor será que a deixe estar onde está, ainda que não imagine onde nem como ir até ela. E qualquer palavra dará, se for aquela que aquele ensejo requerer naquele instante.
Consoante o pau, a paulada e a rachadela.

domingo, 20 de agosto de 2006

ESTERCO VERSUS SABÃO EM DIA DE NÃO IR À MISSA

Domingo. Dia de sonambulismo consciente, de caminhar com as mãos adiante para que os pés se reequilibrem e não tropecem nas rasteiras da própria sombra. Não há sequer vontade de lavar os olhos por fora, pois por dentro é utopia. E no que concerne às mãos, estão limpas: eu cultivo o bom costume de as lavar todos os anos, e também por fora e por dentro, para que o sarro as não tolha.
E porque o tempo continua nas encolhas, tem-se tornado mais e mais complicado vendê-las. E é curioso verificar que as mãos asseadas são mais difíceis de vender que a merda exibida pelas outras. Malhas que o império tece por conta da honestidade nunca tomada como espécie extinta. Ou da doideira de existir ainda quem teime em dar primazia à nobreza dos sentidos, e se atreva a negligenciar a fantasmagoria das contas em cada final de mês.
Um beijo é gesto sublime. Mas um peido ressoa mais longe.

quinta-feira, 17 de agosto de 2006

FÁBULA DA CHUVA E DA MUDEZ DE ANIMAIS EM SERENATA

Chuva. Até que enfim, a chuva. Já tardava esta enxaguadela à ideia de que só as cigarras têm direito a cantar. As formigas, de facto, não têm tempo de ensaiar o coro. É que o mais importante é aforrar a invernia, enchendo as arcas de milho, atestando as salgadeiras, guardando das pragas o vinho. Ou remendando telhas partidas, colmatando brechas da velhice nas paredes, dando uma demão de tinta a portas e janelas, substituindo vidraças quebradas. A ocasião das cantorias há-de ser à borralha, no aconchego dos serões em família, brindando ao prazer de brindar a alguém ou a algo, enquanto o frio, em devido tempo, lá fora, lance as garras a quem não se houver prevenido.
Mas é maldade propalar, como fez o La Fontaine, que as cigarras, no Estio, não trabalham. É vê-las e ouvi-las, de manhã à noite, encher o ar de cantigas, dar colorido às searas maduras, apaziguar o efeito da canícula sobre quem a sofra. Como passarão elas o Inverno? Estarão em crisálida, como é provável, a estudar novo repertório para a nova época, lá mais para os píncaros do Verão do ano que vem, se vier.
Elas que perdoem, as cigarras cantadeiras, esta chuva. Mas também já fazia falta para apagar a fornalha incendiária e encher o bago.
Às formigas, tanto lhes importa que chova como faça sol: ignorando o que sejam férias estivais, pensa-se que cantam em coro no Inverno, à borralha. E que contam anedotas picantes sobre cigarras.

quarta-feira, 16 de agosto de 2006

DE DÉDALO, MEU PAI, ATÉ MEU PAI DANIEL

Acordei hoje muito profundamente triste. De vez em quando, sem que os reais motivos variem de tonalidade, acontece. É como se de repente me encontrasse à beira do salto no abismo que me espera algures, um dia, e não me sentisse ainda preparado para tanto.
Não temo a morte. Desde há muito. Só temo que ela me apareça e me leve sem aviso. Sem que seja eu a dizer-lhe qual o momento exacto de me pôr asas no lombo e me mostrar o espaço onde voar. Ícaro, ainda e sempre, sempre acima de quaisquer muralhas labirínticas antepostas por mim ou por outrem.
Um dia será, já o disse. Não hoje. Uma viagem requer aquela alegria íntima que suscite a expectativa, que esprema o imaginário, que goze o gozo da incógnita, que se ouça e veja antes de se ver e ouvir.
E eu hoje acordei triste de mais para viajar. E ainda não tenho, como também já disse, a mala pronta.

quarta-feira, 9 de agosto de 2006

A CORDA URBANA E O BARAÇO CAMPESINO EM NÓ CEGO

Está um vento daninho, sonoroso e cálido. Que se enrola em espirais doidas de poeira e folhas, fazendo estremecer, de quando em quando, tudo o que por natureza só se mantém amarrado ao chão enquanto a força da gravidade assim quiser. Até os passos de quem passe não se poderão descuidar muito, ou perder-se-ão num espalhafato de rodeios e ziguezagues e tropeços a acabar contra as pedras da calçada.
O sol, hoje, já nasceu com ideias que não serão pacíficas. E se ao fogo dessas ideias se juntar a impulsão da ventania, estarão encarreiradas as condicionantes mínimas para que a memória deste dia tão cedo se não desvaneça. Quase natural será que hoje, em determinados meios, se ouça falar de trombetas, cavalgadas apocalípticas e início das trevas finais sobre este mundo de crédulos onde jamais couberam todos. Mas onde todos poderiam caber, e em paz, desde que mortos.
Isto, como logo se deduzirá, por baixo, no rés-do-chão civilizacional de qualquer urbe acomodada a mitos e a medos, dependente de vícios e manias, consagrada ao culto do imediatismo e da efemeridade como continente e conteúdo, vulgo pragmática para consumo de intelectual imposição ante quem se saiba à espreita. Nem que seja no espelho de cada manhã tão mentirosa como todas no respeitante a promessas e à irrealidade do seu cumprimento.
Contudo, abandone-se a cidade aos seus destemperos de meretriz em vésperas de aposentação, e avance-se para a imensidão ondulante da planície, para a humidade enfermiça dos pantanais ribeirinhos, para a bruteza mais inóspita das montanhas, para as manchas ainda possíveis de floresta. E atente-se que não se atenuou nem um dente o massacre dos raios solares sobre quem, sem o mais impaciente protesto, os vem aguentando no cachaço, de modo heróico ou insano. Ou ambos.
Quão diversos são os valores a embandeirar no plaino campestre e no deserto urbano. Quão parecidos são os riscos a correr numa qualquer das duas extremidades da corda assim esticada até quebrar de vez.

quinta-feira, 3 de agosto de 2006

DA REMELA AO RESMUNGO NO MEIO DE BOCEJOS DE TÉDIO

Está nevoeiro, lá fora. E aqui dentro, também. E se não for nevoeiro, há-de ser neblina, névoa, nuvens baixas, vapor de caldeiras, fumaça de incêndios na serra ou mesmo chuva.
Tudo o que, com maior ou menor espessura, à comezinha imprecisão visual se compare, envolvendo e ensarilhando os pensamentos a que me arrisque, logo pela manhã, após a sobrecarga da noite. São muitas horas seguidas a passear num firmamento sem astros, sem nebulosas referenciáveis no catálogo celestial, e onde o caos anterior às origens se repetirá, sem que dele tenhamos notícias ao despertar. E é triste. O que a gente não faria, se soubesse o que cá nas entranhas se agita, se revolteia, se decompõe e recompõe numa alternância infinita até que acabe, um dia, lá mais adiante ou daqui a nada.
Também pode ser falta de óculos, ou desactualização das lentes, esta nítida obstrução do discernimento vedor, esta indefinição das imagens em torno de quem, como eu, desde sempre se reconheceu à mercê do vício danado de saltar cedo da cama.
Nada que não se resolva com duas ou três, não mais, boas chapadas de água fria na cara, de imediato, e uma belíssima chuveirada, logo a seguir ao despejo que a fisiologia me ofereça e eu, filantropo que sou, convosco reparta.
Bom-dia, humanidade. Aqui estou eu (ainda).

terça-feira, 1 de agosto de 2006

EDITAL UNIPESSOAL DE ÂMBITO INTEMPORAL

É meu propósito não viver nem um minuto mais que o tempo que seja justo viver. Só que a noção de justeza a aplicar-se neste caso, ao bater a sineta de embarque, também será de redacção minha. Logo, embora suspeita, só por ela me guiarei ao tratar da efectivação do propósito adiantado logo no primeiro arremesso para esta montureira.
Apetece perguntar: mas a propósito de quê, esta conversa? É sempre conveniente estar preparado, ter a mala pronta, ter as contas em dia, saber onde se guardam papéis e ninharias que importe destruir antes da ida, deixar bem explícito quem nos merecerá a simpatia de herdar o nosso pecúlio, irrisório que pareça.
Não subsiste em mim, neste momento, a menor intenção de apressar o relógio, para que ele se antecipe a si próprio e se faça ouvir sobre a hora, decidida por mim, afinal. Sempre hão-de ser horas de pôr os pés à estrada e caminhar.
Seja onde for. Seja quando for. Quando tiver de ser, será.