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PINTOR, POETA E CANTOR, OU FAZEDOR DE COISAS LINDAS COM AS DUAS MÃOS E NÃO SÓ.

quinta-feira, 24 de abril de 2008

HISTÓRIA COM FINAL FELIZ NUM DIA TRISTE A NÃO ESQUECER DE LEMBRAR

(À memória de meu Pai, já com catorze anos de extensão)

Tinha nome de mulher, o capitão. E os inimigos dele, ferinos, traziam entredentes que não apenas o nome. E quando a certeza da distância os encorajava a gotejar o fel, chegavam até ao dislate de prognosticar apelidos e patentes, sempre das classes inferiores, sargentos e praças, como parceiros enleados por ele na consecução da alegada mancebia clandestina com que o besuntavam. Quem diria que entre camaradas de armas, livres de entrechos belicistas por excelência, havia tantos e tão aferrados inimigos em perseguição recíproca, sem quaisquer leis cauterizadoras da chaga consequente de olhares em viés e palavrões remordidos, cuspidos, calcados, cobertos de terra? Talvez o fantasma da guerra distante, não longínqua, condicionasse os espíritos e fosse razão única para que tudo servisse de escape às mais assombrações a pairar, muito baixo, sobre todos e cada qual, desde as botas infantes e corroídas pelo medo, ao monóculo dos mandantes com medo igual ou maior, a bem da nação.
Onde há fumo, há fogo —, ostenta e sustenta o repertório anexinista, presumido como de calcanhar rachado nas origens, se rebarbativa se tornar a explicação das fenomenologias sem ela. E neste caso, tão em tudo idêntico a todos os casos onde impere a intitulada dor de corno, o nome feminino foi despejado no charco como mote e redundou em glosas de fácil coloração, aproveitando a lama. O que não dá pernas e braços, quanto mais olhos com voz e dentuça, ao provérbio em quase epígrafe (para que servisse, como serviu, de rolha ao parágrafo, bem como de conteúdo, beberricável sem pressas).
Das feições magras e secas, e apesar da palidez de desenganado após cirurgia inútil, salientavam-se os olhos, também quase brancos ou de cor nenhuma e desde sempre semicerrados por inato asco à demasia de claridade ambiental, e a boca, a perenidade do desdém nos lábios, entre sorriso e esgar, pronta a gelar água nas barbas do sol. Mediano na altura, o caminhar desenvolto, ombros puxados para trás, mãos a balançar conforme os pés, e a cabeça, lá em cima de tudo, periscópio apontado em todos os sentidos, ao longe, sem se saber qual. Trinta e tal anos, já a tombar nos quarenta, ainda dariam para tudo o que lhe aprouvesse, sob qualquer tendência natural nunca antes dissuadida, ou outra qualquer propensão adquirida no mercadejo desses usos de maior penumbra em volta.
Falava baixo, quando falava, o que era raro. E só se servia do número preciso de palavras, fosse qual fosse o discurso ou o auditório, nunca repetindo nada, o mínimo monossílabo, do antes dito. E não admitia que o contrariassem, que o obrigassem a altear a voz, porquanto esta se lhe esganiçaria nos píncaros da irritação e reverteria em falsete de dobradiças sem óleo, impróprias de quem intocável se pretenda, sem mácula, sem sequer sombra no chão. E também não tolerava quem o emparedasse em encómios de inequívoca transparência, superior em galões ou subalterno, não poucas vezes correndo, ele, o sério risco de se ver acusado de indecoro, desrespeito, insubordinação. Entretanto, noutras opiniões com algum peso na báscula, era o capitão credor de admiração pelo acerto no desempenho das respectivas funções, com o correspondente despejo de louvores na caderneta.
Ora, apesar de não esgotado o cardápio de prolegómenos, abnegados na amostragem da personalidade em evocação tão tardia como todas, avance-se, enfim, em direcção à narrativa de qualquer facto instrutor de quem na verdade residia no corpo protagonista, considerando que tão feios dias já se dirão enterrados, embora muito próximos — avisa quem nos de hoje ainda teime em viver — da superfície. E porque um país em guerra (longe mas perto a partir de qualquer falta cometida e a sancionar com ela, a guerra) tem sobre si a fantasmagoria com que essa mesma brutidão imunda designada guerra se identificará, todo o cuidado tido e a ter era nenhum.
Numa das salas do gabinete de estudos, chefiado pelo militar de cuja fardamenta aqui se trata, e onde se compunha, entre outras fugas ao ferrão do tédio, o jornal da unidade, estava o furriel debruçado sobre alguns bonecos desenhados no estirador. Ao lado, numa secretária, o cabo escriturário, submerso num mar de ofícios a arquivar, fingia-se ocupado com a atenta leitura de formulários diversos. Na rua, dentro da normalidade naquela estação do ano, sem grande exagero se diria audível o estrugido da canícula na sertã da parada. Exceptuando isso, àquela hora, o silêncio comandava o quartel. E mais ninguém por ali se sabia então, com esses dois, no gabinete.
De súbito, no corredor, em jeito indefinível, ouviu-se um ruído breve, rasteiro, e o furriel, mantendo os olhos fixos na bonecada, permite-se uma graçola nele recorrente, como se se dirigisse ao cabo escrivão, na secretária, imperturbável:
“Ouço passos de cavalo. Será ele?”
“Sou eu, sou”—, ouviu em resposta, mais espantado que medroso, da porta de entrada, acabada de entreabrir por uns olhos sem cor e que logo abalaram, sem mais comentários.

quinta-feira, 17 de abril de 2008

A COMEÇAR E A SOÇOBRAR À BORDA D'ÁGUA COM LISURA DE CARRIS PELO MEIO

A ruína física, com as demais atreladas em comboio sem previsão de paragens até ao término da linha, faz de locomotiva fumarenta, serra acima serra abaixo. E não dando um segundo de tréguas ao fogueiro, aumenta a velocidade da marcha a cada momento, ainda que a lenha ao dispor já escasseie, ainda que a fornalha esmoreça, e dela, além da inútil estridência dos silvos, só o fumo lhe acuda, à ruína, e não como cortinado de janela, mas mortalha.
Diz a sapiência pela experiência decantada que nada de nada valerão quaisquer esforços no intuito de alterar o sentido, porque inexorável, do andamento. Nem de lhe reduzir a celeridade. Ou de lhe ignorar os efeitos, fazendo de conta que ninguém sequer pensara em viajar, pois ninguém para tanto tirou bilhete na gare de embarque.
Andar em viagem, assim, sem a flagelação dos horários de partidas e chegadas, bagagens declaradas ou a declarar e clamor de altifalantes, ou seja apenas nesta variante de doméstica lonjura, na rota de tantos livros já lidos e relidos, e tantos mais mas tantos a já não ler por falta de tempo em vida, é positivo, salutar e bem menos arriscado. Viajar é dar balanço aos passos para que nunca se apeiem do sonho de serem asas, rente ao fim ou muito antes. Mesmo que a viagem nem prossiga adiante do espaço definível pela sombra caída aos pés. Mesmo que se acabe no preciso instante de içar âncoras e zarpar. Um dia.

quinta-feira, 10 de abril de 2008

À SOMBRA DA LUZ (FUNDIDA?) DE ABRIL

Se a hoje tivesse chegado, e ele tanto empenho pôs nisso, cometeria a prosápia, ainda não lisonjeira, de completar noventa e um anos. E eis que já lá vão quase catorze (daqui a catorze dias) a caminhar sobre o momento em que ele, sem querer, desistiu da caminhada.
Também nunca mais manquejou.
(Foto de "Dias com Árvores")

terça-feira, 8 de abril de 2008

TONTOS TEMPOS RETEMPERADOS DE LONGE PELA TONTEIRA DE OS LEMBRAR

Era em charcos como este efémeras poças de água formadas pelas últimas vergalhadas da chuva em refojos mais argilosos, entre feno e silveirões gigantescos, na altura —, que eu, cachopo, brincava. O mar era manso, como conviria à estratégia de ataque, e as naus lusitanas, cascas de noz a sério sobre os vagalhões (analogia que eu lera algures e aproveitara na prática), enfrentavam e derrotavam sem alternativa os pesados galeões castelhanos, talhados a canivete em corcódea dos pinhais delimitadores do horizonte. E todos aqueles navios, qualquer que fosse o pavilhão comandante, exibiam suas velas de papel, com a Cruz de Cristo pintada a guache e não raro esborratada pelo frenesim da luta, e se movimentavam conforme o sopro lhes dava. Os pulmões produtores da ventania eram, então, mais fraquitos e sensíveis à falta de conforto em vestuário, calçado nenhum e nem sempre alimento à hora dele. E também andariam longe de se jurarem isentos na força e na direcção incutida ao vento nas velas. E havia ainda, como corja de inimigos a afundar no lamaçal, a mourisma e a ladroagem de piratas e corsários, vulgo ingleses disfarçados de aliados seculares.
Só mais tarde aprendi que a maior parte da história aprendida pouco tinha de verdade autenticável por si mesma. Nunca nela eu ouvi falar da sífilis, por exemplo. Nem soube das transumâncias sem retorno, à sombra da cruz nos padrões implantados, por mercê da negociata de negreiros e afins com selo régio. Nem nunca tive notícias de quantas mortandades e depurações se soterraram no fumo das medidas ditas de alcance remoto.
Quando tudo desaprendi e de novo ousei saber, todavia, era já muito tarde para brincar aos combates entre caravelas de noz e de casca de pinheiro, assim, em charcos iguais a este.

quarta-feira, 2 de abril de 2008

PRIMEIRAS LUCUBRAÇÕES PARA A HIPÓTESE DO MEU TESTAMENTO A NINGUÉM

O arrependimento é uma dor terrível. E dói mais, muito mais, por ser inútil. Dói, por isso, duas vezes. Melhor fora, para toda a comunidade entretida a não fazer contas, que nem uma doesse. Mas lá doer, dói, e com que gozo. Até lembra uma verruma em carne tenra: nem precisa de rodar, que o buracão logo salta ao caminho das imprecações ditas proibidas pelo bom senso.
É uma evidência que ninguém consegue cuspir em si mesmo. Mesmo que o tente ao espelho, cospe no vidro, e nunca na crescente irritação lá reflectida. E isto, assim, a apalpar terreno, para não atentar grande coisa na imundície que tamanha estupidez comportaria. Imagine-se a chavasquice de retirar à força de esfregão, primeiro, o mimo do muco escarrado contra a própria impotência de eliminar um acto indelével, e depois limpar, lavar e puxar lustro à vidraça, sempre com alguém lá atrás a copiar todo o esforço desenvolvido gesto a gesto, a repetir um por um os pingos de suor de cada esgar, a repartir com o lado de cá a assunção da imbecilidade inicial que, em vez de o destruir e arrumar de vez nos confins da desmemória, repinta em tonalidades rutilantes o painel (com assinatura e tudo) do arrependimento a multiplicar-se, hora a hora, sem contenção nem apelo. E o mais provável, como será de lógico alcance, é o frenesim de limpeza fenecer resumido a cacos e gumes com o fatídico sangue à mistura.
Nada de válido se tem desse mistifório de iras e rancores enlaçados a ressentimentos e raivas. Compensação alguma equilibra os pratos da balança em que se pesem os dias a viver, a título prévio, atendendo à certeza de que o nó da questão se ficou nos dias já vividos. Apesar de tudo, ele subsiste, o arrependimento, minando quanto mais aconteça de positivo e promissor aquém do espelho.
Esfregões, há muitos. Bem como chapéus. E barretes.