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PINTOR, POETA E CANTOR, OU FAZEDOR DE COISAS LINDAS COM AS DUAS MÃOS E NÃO SÓ.

domingo, 11 de outubro de 2009

GUIÃES, ENTRE A CIDADE E AS SERRAS QUE O EÇA CALCORREOU (IV)

O dia nasceu com cor de chumbo. Mas o sol espreita, matreiro, e é um regalo sentir-lhe o afago nos ombros, qual mão de amigo a procurar e a dar conforto espontâneo, sem prévia mensuração nem demasias na carga. Os técnicos do tempo, indiferentes a quem usufrua o privilégio das férias ou amargue na pele a abrasão da sobrevivência, agouraram chuva para hoje, em forma de aguaceiros fortes, lá mais para o fim do dia. Quem dera que se enganem. A minha horta não precisa de rega, e as flores de minha jardinagem ainda cheiram que chegue. E qualquer regador conseguirá afirmar-se, se necessário, a favor da continuidade das alpercatas de pilha-galinhas em serviço permanente, das escassas roupas no pêlo, enquanto dia, e do bom hábito comungado de dormir com tudo ao léu do pescoço aos pés, quando a noite ditar leis e forem horas de içar velas e zarpar à redescoberta dos antípodas.
Que a Estrela da Tarde nos incendeie, estimule e mantenha, até que o epíteto se lhe mude para Estrela da Manhã.
Afinal, não se enganaram, os aguadeiros, e choveu mesmo. Mas quais aguaceiros fortes? Só uma aguadilha mansa, penumbrosa, de lavar os olhos ou pouco mais. E que mais poderia ser? Não há quase nuvens, a não ser de cor branca em demasia para que faça doer a perspectiva de alguma merenda ao ar livre, no campo, na serra, ou mesmo dentro de casa, quando o importante é ter onde e apetecer, com ou sem estrelas convocadas conforme a hora para incendiar, estimular, manter o viço e a ordem, havendo como e com quê.
À Estrela da Manhã, essa vagabunda, ninguém a viu. Só algum pastor dos antigos, ao ziguezaguear através do pasto com o gado. Curioso é o facto de o zagal ignorar que a também apelidada Estrela dos Pastores não é uma estrela, mas um planeta. Soubesse ele, que rendimento lhe proporcionaria a sabedura? Subir-lhe-ia os preços de venda da lã e do leite? Assegurar-lhe-ia maior verdura nas pastagens ante as canículas do Estio e menos tremuras na travessia das montanhas a caminho do Inverno? Em Vénus, ao que consta, não há feiras de gado nem haverá prados mais ou menos verdes consoante as estações do ano. Mas há a convicção, vinda dos gregos devassos que na devassidão dos romanos teve sequência, de que lá nas olímpicas altitudes seria ela, Afrodite ou Vénus, deusa e fêmea ou vice-versa, a maior puta entre as putas que o privativo lupanar das divindades comportava.

GUIÃES, ENTRE A CIDADE E AS SERRAS QUE O EÇA CALCORREOU (III)

Toda a gente dorme e ressona, até os cães, lá dentro. E mais lá dentro ainda, na escuridão da sala de espectáculos do subconsciente de cada qual, tornar-se-ão visíveis e sobrepor-se-ão com e sem vínculo filmes de e para todas as idades, curtas e longas metragens entrecortadas ou arrastadas de ponta a ponta, cenas macabras, grotescas, assombrosas de assustar fantasmagorias ou hilariantes no assalto às profundas do arquivo, se fácil de mais é o acesso, e até o recheio pode tornar-se em substância a esbulhar, quando se sonhe em voz alta. E o protagonista principal também vem a ser autor do guião e sonoplasta e homem da câmara e editor e realizador e até produtor, se sobre ele sempre recai a obrigatividade de aguentar as despesas, haja ou não orçamento com resistência às correntes de ar pelos buracos da fita, quando nenhuma hipótese de prémio, no fim, lhe traga fôlego. Não deixará, contudo, de se observar e com estranheza, na maior parte das vezes (no meu caso, por exemplo), que nada do enredo vivido se fixe, se deixe enclausurar na bobina da lembrança, e logo se torne em oferenda ao caruncho das inutilidades guardadas sem qualquer préstimo à vista.
E os cães, esses felizardos, com que sonharão eles? Porque sonham, lá isso sonham, ninguém duvide. E falam alto, riem, gemem, atravessam paisagens tão deslumbrantes como as nossas, estremecem ante iguais sustos enfrentados, arremedam o embuste do amor como nós. Pena é que não vão ao cinema.

GUIÃES, ENTRE A CIDADE E AS SERRAS QUE O EÇA CALCORREOU (II)

Eis um som que a cidade já se esqueceu de ouvir — disse-me eu, como lembrete ou beliscão dado por mim a mim outro de cuja estatura mal sei, ao dar com ele estupefacto pelo cacarejo de uma galinha, impante e animada pelo dever cumprido, acometendo a gritaria de publicitar a façanha, de sua competência, de pôr um ovo. Alguém, horas antes, lhe terá apalpado o cujo e sorrido após a revelação feita pelo dedo, médio ou indicador, os mais treinados no abuso de ancestral complacência a dividir entre fornecedor e fornecido. Entretanto, também pode dar-se a pontaria de aquele ovo promotor de tamanha algazarra, cumprindo afinal a sua função primeira, estar galado, nem mais, e assim se furtar à inquisitorial execução na frigideira e à quase instantânea deglutição entre mandíbulas sempre esfaimadas por vício. E isto, sim, o som dos maxilares mancomunados como trituradores a compasso, é que é um som que a cidade nunca se esquecerá de ouvir. Nem o eu outro, gordo e abstracto em relação ao teor poético da cantoria propagandista, que não à poesia emanante do estrugido na sertã. E uma sopinha de pão a mergulhar na gema, para a aproveitar na íntegra, não permitindo que a mínima gota escorra pelos beiços e venha a sucumbir, se a língua já não for a tempo, no guardanapo das costas da mão?

GUIÃES, ENTRE A CIDADE E AS SERRAS QUE O EÇA CALCORREOU (I)

Ainda a alvorada mal acabara de assentar arraiais aquém das últimas serranias a abater, vi duas rolas à bulha no chão da vereda que divide a vinha ao meio. Dois machos em contenda por causa da composição do harém, não comungável nem passível de negócio conjecturei eu, que de ornitologia nunca soube mais que o nome sem rosto de alguns pássaros. Ou então duas fêmeas em mútua descarga de desconfianças acerca de qual de ambas, odaliscas assumidas, frui em excesso do que à outra escasseará. Ou uma e um, um e uma, ele a querer convencê-la da rectidão das premissas na construção do futuro, e ela a negar-lhe a aligeirada montagem dos andaimes por descrença na firmeza da obra por ele projectada. Concubinas ou varões, fosse qual fosse a diferença de pressupostos em discussão a uma hora daquelas, lá me vi obrigado a separar as duas rolas roído de inveja à pedrada. De pouco valeu, todavia, porque tinha os olhos piscos e nem na minha sombra acertei com os dois pés ao pousar. Mas elas entenderam o recado e lá foram, de pazes feitas, conferir as contas para outro lado.