http://photos1.blogger.com/blogger/4837/2733/1600/moi4.jpg

umbilicativo

A minha foto
Nome:
Localização: Coimbra, Portugal

PINTOR, POETA E CANTOR, OU FAZEDOR DE COISAS LINDAS COM AS DUAS MÃOS E NÃO SÓ.

quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

GUIÃES, ENTRE A CIDADE E AS SERRAS QUE O EÇA CALCORREOU (IX)

Gosto de lá ir, de quando em quando. Ali estão todos, lado a lado, sem problemas de ter este ou aquele parceiro à ilharga, ainda que antes da presente aproximação nem tivesse sido muito sadio o relacionamento entre as partes. Justos ou injustos, injustiçados ou não porque em seu devido tempo, muitos velhos muito velhos, outros não tão velhos mas também já lá bem representados, e até donzéis e crianças. Todos eles, neste entretanto, com a mesmíssima idade.
Em paz suprema se irmanam ódios mais antigos que a antiguidade do mármore verdilhento pelo musgo, paixões pungidas ou emurchecidas antes do grito carnal, invejas e brios amachucados por inconvicção na réplica, sensacionais e menos sensacionais paradigmas de estoicismo consoante a directriz aproveitada, monstruosidades impunes e gestos de amor repelidos por falta de olhos de ver. Tudo por ali se imagina e acrescenta, ou se reduz e revivifica. E que ninguém se atreva a pôr em causa a infalibilidade de que um dia, remoto ou próximo, lá virá a cair e a transformar-se, com semelhante primor, em tema de zombaria ou de elevação aos astros. Nem a imaginação o logrará evitar.
Previstos para dar sombra na vereda até ao portão de entrada (que de saída é que ele nunca será), como imprescindíveis deponentes citados em julgamento a subentender no calendário, eis os crónicos ciprestes, erectos, majestáticos sem trono nem coroa ou ceptro de ouro a impor genuflexões e correlatas concupiscências a seus súbditos. Haverá por aí algum cemitério que os não tenha?
Gosto de ir até lá, de quando em quando. Pelo meu pé.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

GUIÃES, ENTRE A CIDADE E AS SERRAS QUE O EÇA CALCORREOU (VIII)

A neve veio, durante a madrugada, apresentar-se. Talvez pretendesse, qual irmã rica da outra de menos remedeio na vestimenta, não deixar os créditos por mãos alheias, como é habitual ir dizendo em situações semelhantes. E continua a cair, mortífera, porque associada à chuva e, por isso, àquele outro irmão de remotas aparições, o granizo. A fechar a procissão familiar, imperará sem altercações nem protestos o mano velho, o gelo, como tapete de carreiros ou de estradas, ou nos charcos da berma e nos riachos espontâneos e de imediato petrificados, ou ao transformar-se em vítreos pingentes de beirais e arvoredo, ou no ar e neste patético desespero de alguém irromper aos pinotes e a esfregar as mãos uma outra até aos ossos. Quando toca a rebate, nada a fazer, se aquilo que se ouve bater são os próprios dentes.
Que maravilha é, na verdade, olhar a neve e andar sobre ela, ouvir-lhe o brando rechinar impresso a cada passo, ou até pegar-lhe e senti-la a derreter-se ao calor ou a enrijar sob o aperto dos dedos. A mais terna e doce das maneiras de a ver, palpar, escutar, e até cheirar, contudo, é em fotografia ou em filme, ou na memória a que a demasia de anos já empreste condescendência. Há lá coisa mais sã que a luminosidade e o afago que o nosso sol granjeia a quem o ame e respeite?

GUIÃES, ENTRE A CIDADE E AS SERRAS QUE O EÇA CALCORREOU (VII)

Parente paupérrima da neve, embora próxima, talvez gémea falsa fora da graça e dos livros, também não deixará de ter o seu encanto, alva e leve, cristalina, mais ruim que benfazeja, a geada. Subsiste apenas até que o sol a persuada a abandonar as malignas pretensões de corrosão para outro dia. Que quanto sem ela adormeça se livre de acordar com a malvada espojada no mesmo leito. Mas dizem os velhos entendidos nesses contextos que a geada também tem virtudes. É proveitosa, por exemplo, porque impede as árvores e as plantações em geral, viciadas até então por temperaturas benévolas fora do tempo, de deitar folhas e flores com demasiada celeridade, como se a hora das invernias já lá fosse e os dias já se ataviassem para a apoteose primaveril. E também se proclama como vantajosa porque amansa nos cascos o vinho novo, dando-lhe enfim corpo e alma atestáveis nos estalos da língua. E terá ainda utilidade de grande monta, dizem as velhas entendidas noutros contextos de outra caldeação, porque consegue amarrar os velhos em casa muito mais tempo, acocorados sob a regência da lareira, sóbrios ou de penca pendente e a pingar no brasido, pouco lhes importará, às velhas, obrigadas a dormir com o que reste.
Útil será, será bela, a geada. Mas só ao longe, ou nem isso.

GUIÃES, ENTRE A CIDADE E AS SERRAS QUE O EÇA CALCORREOU (VI)

Outono é tempo de queda. Inexorável. E tudo cumpre o prescrito, não se sabe por quem, acorrendo à chamada proveniente das profundezas terrenas, e cai de qualquer maneira, sem pressa a mais nem detença a fingir ser por acaso o cumprimento da pena. Não apenas as folhas das árvores, ou algumas pétalas de flores tardias, ou até frutos a aliviar as ramadas com desmesura de produção, ou as tormentas temporãs sob a regência de quantas chuvas não vieram quando tão úteis seriam, ou os preços sob a máscara dos saldos, para que a ladroeira comerciante, que já os gregos equiparavam aos ladrões oficiais arrolados em tabela própria (de pilha-galinhas a banqueiros), não ganhe tanto mas ganhe e ainda se ponha a ganir de mão estendida à comiseração governante, esta sim, paradigma de ladroagem maior autenticada (quem nos dera que também não demore demasiado tempo a cair no charco da muita merda obrada entretanto).
As vinhas, ainda agora acabadas de parir, despem-se e lá se aprontam para de novo emprenhar, continuando o ciclo de que há notícia desde os caboucos bíblicos de maior longevidade. Nas cores predominantes, o vermelhão, que superara os verdes e os ocres, perde a graça e cede a passagem aos pigmentos terrosos, base de tudo. E a cor de cinza, pela mão das nuvens, altas e baixas, desde há muito prevalece onde o azul celeste de estival temperança já nem pelas saudades é lembrado. É de tormentosas tonalidades todo o espaço cósmico vislumbrável ao nível do chão, como se a vida se tivesse a si mesma escorraçado de cima do palco onde persista em representar-se.
Frio e chuva ao mesmo tempo, cá pelas zonas mais rasteiras, significa neve na serra. Pois que caia e pinte de branco a lonjura a que os olhos se sujeitem, se impotentes na contenda com o que de perto não vejam nem se melindrem por isso. Da linha do horizonte pouco importará a cor, mas antes branca que negra.