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PINTOR, POETA E CANTOR, OU FAZEDOR DE COISAS LINDAS COM AS DUAS MÃOS E NÃO SÓ.

domingo, 28 de maio de 2006

VIAGEM AO NORDESTE OU A QUASE LÁ

Está uma daquelas manhãs em que até apetece viver. Talvez porque esteja tão nítida como a certeza da morte. Daqui de cima, vê-se uma boa extensão do planeta. O céu azul, por inteiro, a acinzentar-se no apoio sobre o dorso das montanhas que o sustentam. O sol, tirânico, a morder a pele de quem se descuide e se lhe ofereça. As vinhas, lindas, longas, submissas de tão verdes e penteadas, ao rigor, como se fosse domingo e horas da missa. O casario, espalhado, informe, decrépito, esborratado aqui ou além pelo desplante multicolorido de l’argent. A igreja, secular, de campanário morto às mãos da electrónica, já que de meia em meia hora martiriza crânios crentes e não crentes, sem distinção, com a desinfeliz ladainha da outra que teria aparecido aos pastorinhos e que se tornou indústria e sem ameaças de falência na próxima vintena de séculos. E em torno da igreja, algumas árvores, entre as quais se destaca a fálica imposição dos ciprestes, como se o cemitério, lá atrás, precisasse de propaganda mentirosa para granjear mais clientes.

Algures, num quintal vizinho, duas “gralhas” septuagenárias, que lá andarão a amanhar a horta, vão contaminando a ambiência com um papaguear de velhas já em muito boa altura de levar asas no lombo. É que a limpidez do ar traz-me a conversa, na íntegra, até ao ponto final das minhas mãos. Partilhas, claro, como tema de debate escolhido pelas verrumas hortelãs.

E há-de por aí haver um burro – que ainda me zurra na memória de outras jornadas aqui – com uma voz lânguida, de dolência infinda, que se nos dá a ouvir no eco das serranias em volta do povo. Animais tristes, os burros. Quase tanto como eu.

Felizmente, há os passaritos. Pardais, piscos, ferreiros, pintassilgos, andorinhas, melros, rolas, pombos bravos e mansas pombas, sem mistura, e alguns mais cujo nome desconheço. Todos em coro sem coro nem hipóteses de harmonia: pisca para aqui, pardala ali, arrulha acolá, pintassilga além. E em contraponto, o naipe dos zumbidos de abelhas e vespas e varejeiras e cigarras e moscardos e escaravelhos e joaninhas. E, fora da orquestra, cães que ladram, ladram, ladram, só para que os donos não se esqueçam deles. Malditos donos. Deveriam levar coleira e corrente e também ficar presos à chuva e ao sol uma vida inteira, para que enfim pudessem aprender quanto dói ser cão.

Com a cabeça pousada sobre o meu pé esquerdo, com um olho meio aberto e outro meio por abrir, o nariz a tremeluzir porque em serviço permanente, e as orelhas muito atentas à desafinação de seus pares não integrados na orquestra, o Satie, meu grande companheiro e meu fidelíssimo amigo. Sempre.
(Escrito em Guiães e aos 27 de Maio de 2006)