http://photos1.blogger.com/blogger/4837/2733/1600/moi4.jpg

umbilicativo

A minha foto
Nome:
Localização: Coimbra, Portugal

PINTOR, POETA E CANTOR, OU FAZEDOR DE COISAS LINDAS COM AS DUAS MÃOS E NÃO SÓ.

segunda-feira, 29 de outubro de 2007

IRONIA MATINAL SOB A COLORAÇÃO DE OUTONO ORA EM AVANÇO

O estrondo, ouvido ainda, marcará o fim, que não o princípio de coisa alguma, a não ser da paz. Será algo parecido com um relâmpago inverso, em que o fulgor da escuridão instantânea se sobrepõe ao da luz e o trovão rebenta em simultâneo, num único urro, sem troça de ecos maldosos.
E até lá, a viagem, temporal e física, embuçada pela incógnita dos intentos e pelo anonimato posterior. Que ninguém sonhe recolocá-lo nos lugares e nos tempos abandonados à traça de um esquecimento por cônscia opção, assumida e demandada passo a passo.
Quando será, não se sabe. Nem importa muito. Em chegando a hora, se saberá que a hora chegou, qual comboio esperado à tabela e nunca antes nem depois, que o passageiro, exclusivo, nele tem assento reservado desde a gare onde nasceu e se fez despenhar, de cabeça, sobre a linha.
Sobrevivente ao embate, quanto possível vívido e lesto ele se aguentou desde então, embora ciente à partida de que nunca tal viagem o arrastaria até mais adiante do que a extensão da própria sombra desenhada no chão. Seja de manhã cedo seja fim de tarde e os raios solares sejam camaradas ao alongá-la, a sombra, sobre a tela a trabalhar pelos pés, que bem escassa se acreditará sempre a envergadura de quem pela sombra se meça e pretenda impor.
Antes servir-se da fita métrica. Pelo menos, poupará trabalho ao cangalheiro.

terça-feira, 23 de outubro de 2007

COM O MALEVITCH PRANTADO SOBRE A LINHA DO HORIZONTE

O dia de hoje amanheceu quase tão grosso de nevoeiro como a densidão de uma tela em branco. Pior, talvez só a morte, na acepção exacta, se se tiver em atenção a falta de notícias de lá para cá e ao invés, seja onde for.
Entretanto, apesar da teimosia do sol em se despir aquém da cortina, mantém-se no ar a morbidez acabrunhada deste dia, enfermiço de cor e de ideias, condenado a perder-se na noite dos dias que nem manhã, enevoada ou desfeita em ranho de chuviscos, conseguiram ser.
Logo mais um tanto, rente ao crepúsculo antecipado dos dias assim, ou seja antes do sono se valer do truque de arremedar o desvão da morte para lhe atenuar a inexorabilidade, haverá contas feitas a rigor, subtraindo-se às horas em falta as que aí vão, mais brancas de tédio obstrutor que de neblina.

sexta-feira, 12 de outubro de 2007

NOSTALGIA DEPENICADA À DISTÂNCIA DE QUANTOS ANOS SE CONFESSEM

Voltar aos caminhos corridos na infância não significa voltar ao tempo dela. Tudo é tão igual e tão diferente. São outros os olhos, sendo ainda os mesmos. Outra, a verdade contornável pela razão. E até os perigos vividos os muros galgados noite arriba, os troncos de árvore trepados a pulso e arreganho de artelhos nus, as vertentes escaladas do sopé ao céu, as águas do rio sem fundo nem barco, as fomes malsofridas com fruta roubada−, parecem ter agora menores dimensões e nenhum susto a multiplicá-las.
Este ressalto de terra acima das vinhas, por exemplo, que foi barbacã de olhos e tremuras, ainda cá está. E ainda cá está o ínvio carreiro, de dia, que à noite seria a rota da seda, apesar da praga de silvas e cardos à escolha. E os poços e charcos de apedrejar rãs sem culpa formada nem direito a recurso. E os pátios traseiros de espreitar janelas entreabertas por deslize ou maroteira. E o velho miradouro de mirar as putas a alisar o feno por debaixo de oliveiras e carvalhos. E esta estrada, de longe até longe, a passar tão perto de não parar nunca. E um ou outro cheiro guardado entre os muitos cheiros guardados sem querer. E uma ou outra história de gentes cuja memória morreu antes delas. Tudo o que foi tudo, tendo sido ou não, e hoje nada é, sendo tudo ainda.
São os mesmos olhos, são. Só que já são outros.

quarta-feira, 10 de outubro de 2007

OUTUBRO MEANTE E O SOL DE RACHAR PEDRAS NÃO DESISTE

São dez e quarenta da manhã. Amanheceu limpo e solarengo o dia de hoje. Mais estiento que outoniço. Árvores e pássaros dão-se as mãos no pesado ofício de surribar o pensamento, à sorrelfa de o trazer das profundezas e pôr ao léu. Despido de andrajos, ainda que descalço, e bem lavado, desde o cocoruto onde se transporta o boné às partes baixas e aos recônditos a nunca desenterrar, afirmar-se-á em perfeitas condições para que a atitude dita de criação dê sinais. Eis um morto a pedir meças, por teimosia, à sua ausência em vida.
Ninguém lhe peça contas. Ninguém contas lhe preste. Nunca a ele recorra quem o não confesse como sua parte. Apenas os pássaros e as árvores alguém o disse antes se dão as mãos nessa apoucada função de esbouçar o pensamento, tirando-o das silvas, dos cardos, das fossas de trampa para a luz do dia, que hoje amanheceu menos outoniço que estiento, solarengo e limpo de dar vista aos cegos.
Lavemos a boca, pois, que o sol não merece que se pronuncie o palavrão trampa. Antes merda.

quarta-feira, 3 de outubro de 2007

EM TREJEITO DE TOADA À DEBANDADA NUM QUASE NADA DE TUDO

Está na hora de ir embora. De abalar até à brutidão dos dias a descontar, sem recibo, nas contas finais. Assim se cumpra o desígnio dos introrsos (como eu), quando compelidos a bater em retirada da caverna de si mesmos, seja ou não através do próprio umbigo, porta única. E porque a tripa mental a tanto induz, já urge o instante de voltar aqui, onde o tempo parado não parece doer tanto. Ainda se ele parasse deveras, alheio à marcha da vida e aos seus mistérios, e se aliasse à mornidão destes sítios e de quem neles se creia em movimento. Só que não pára. Sequer um segundo. E talvez por isso a chuva sirva de desculpa à medida. Amanhã, quando aninhado na cela de quilómetros sobre quilómetros de distância física, dir-me-ei que não, coisa nenhuma. Que nunca a chuva carregaria, sem preço a pagar em géneros, as culpas deste abandono aos ratos da opacidade cerebral de tais ensejos de luz e transparência e consequente exaltação em obra alguma.
Deveras importante é ter consciência de ter os pés no chão e a cabeça a preguiçar na outra ponta. Chova ou não chova.

(Guiães, 30-09-2007)

terça-feira, 2 de outubro de 2007

DE TRONCO DE PINHO A ESCANO COM A SINA DE SER LENHA JÁ TRAÇADA

Neste escano, velho de duzentos ou mais anos, segundo diz o madeirame em pacificado tom de cinza, quantos repastos, de empanturrar ou frugais, terão sido desbastados e devorados por dedos a engalfinhar-se, que não por talheres completos e empunhados a preceito? E quantos cântaros de vinho se não ergueram e quebraram em saudações ao rei e à rainha e aos infantes, lídimos ou bastardos que se arrogassem? E quantos nadegares roliços por aqui não se espojaram e lá libertaram os seus traques só audíveis pelo nariz? E quantas paciências, dando orelhas e língua a um qualquer baralho de cartas, não entediaram os serões até aos bocejos do tamanho do universo à luz de lamparinas azeiteiras? E quanta perfídia inquisitorial não teve aqui também, neste escano, confessionário e távola tribunícia, em detrimento das práticas do bem, do amor e da paz entre os homens de boa vontade na terra, aviada que se apregoasse a glória eterna a quem se sabe?
Ao mando de serra, plaina, enxó e formão em mãos anciãs no realce, e eis um instrumento digno de encómios e bom trato, este escano, quaisquer que viessem a ser os usos e os utentes nele abancados há duzentos ou mais anos, se se der crédito à coloração pacificada em cinza do madeirame, à ferrugem dos tão escassos pregos empregados na junção e no aperto, ou às fendas sinuosas de sinistras no sofisma de lhe encomendar o fim sem honra, na fogueira, a breve distância, que não daqui a dois séculos recontados como esses que aí vão.
Assim sendo, restaure-se, que o móvel merece mais nádegas e mais traques mudos e audíveis como eco da história, pátria ou outra qualquer, que tantas haverá de igual vanidade.

(Guiães, 28-09-2007)