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PINTOR, POETA E CANTOR, OU FAZEDOR DE COISAS LINDAS COM AS DUAS MÃOS E NÃO SÓ.

sexta-feira, 30 de junho de 2006

COMO TRABALHO DE OFICINA EM SERVIÇO PERMANENTE

Hoje não sai nada, está visto. Talvez a torneira esteja com a borracha estragada. Ou talvez seja a canalização, já decrépita, a requerer mãos cirúrgicas e ferramenta eutanásica. Compreenda-se que tudo na vida tem um fim previsto. Até a própria vida. E as palavras, porque delas se trata, são material sensível. Precisam de ter campo livre onde quer que as requisitem. Haverá, portanto, que rever todo o sistema que as produz e no-las expõe à escolha. Só assim continuarão a fluir e a ter o seu desempenho assegurado: dar notícia fidedigna daquilo que lá por dentro de nós se passe. Seja nas vísceras mentais, onde a decrepitude dos canos é por hábito mais notória, conforme o tempo, corrosivo, lá se acumula; seja nas outras, onde a merda só se revela à saída através do cheiro e das náuseas de quem de si, com clamor ou sem um pio, a produza e ofereça ao mundo.
E por falar em saída, sempre saiu alguma coisa. O pior é o cheiro, que não é de rosas milagreiras nem do desperdício dos cravos naquela já remota madrugada. Estávamos a falar de quê?

quinta-feira, 29 de junho de 2006

SOBRE A ROTA DA SEDA, POR TERRA, PELO AR E PELO MAR

O meu estado anímico actual será o de larva que começa a entretecer os primeiros fios para formar o seu casulo final. E digo final porque à crisálida, neste meu caso, não se seguirá a devolução ao ar livre como lepidóptero com manias, ainda e sempre, de voar de flor em flor. Não faço a mínima ideia, ninguém fará, daquilo que em nós, porque seres conscientes, se virá a processar depois de encerrado o casulo.
A noção de infinitude―para não dizer imortalidade, palavra de dúbio sentido pelo mau uso que dela se fez, se faz e se continuará a fazer nos próximos rebanhos de mortais desde a nascença―, noção aquela que nos decalca os passos desde que nos descobrimos em nós, também se nos virá desintegrando, partícula a partícula, consoante se desintegra este corpo em que nos transportamos. E quanto mais se aproxima o micronésimo sílex inverso, que há-de determinar o momento exacto da implosão das ideias de imunidade ao abate, mais a apetência por tal momento parece instalar-se em nós, lançando-nos o repto de lhe darmos razão de ser e oportunidade de se revelar.
Deixando em paz e sossego o ourives e barqueiro Gil Vicente, com as barcas todas que ele construiu e pôs a navegar por aí, lembremo-nos do provérbio que diz que “quem fala no barco quer embarcar”. Como neste meu caso não se processará a devolução ao ar livre de nenhum lepidóptero com manias, ainda e sempre, de voar de flor em flor, não será prudente aguardar, no mínimo, que a maré baixe? Quem sabe se não se poderá atravessar a pé, mesmo que com água pelo pescoço ou mais acima, desde este lado de cá até ao outro.

terça-feira, 27 de junho de 2006

RECORRÊNCIA À OCORRÊNCIA DO FOSSO PRELIMINAR

Pouco deve haver de mais negro que uma tela em branco pousada no cavalete. É como a noite a prolongar-se pela manhã acima, até que o sol, sempre iminente, se resolva a nascer, nesse dia ou no outro, na semana seguinte, um mês depois. Ou jamais.
Jamais se pondere um quadro pelo valor físico, desde as dimensões aos materiais utilizados, nunca esquecendo, nestes últimos, o tempo necessário à sua composição como obra visionável. A pintura é uma arte mental. E aí é que está o gato de haver pintores e pintores. Não basta ter-se jeitinho, nem calcorrear compêndios de ensinança, nem escutar e corroborar na prática tudo o que os mestres consagrados advoguem, nem intelectualizar o discurso com pedantes filosofias de alguidar contra penico. E porque é mental, dirigir-se-á por via directa à mente, mais iluminada ou menos entregue ao dramalhão de pensar muito, e nunca apenas aos olhos ou às algibeiras cantantes.
Daí, que referências invocar ao determinar-lhe um preço? Dói muito o acto de vender um filho. E dói mais ainda o facto de o não parir.

domingo, 25 de junho de 2006

BOM-DIA, MUNDO. AQUI ESTOU EU (AINDA).

Um dia feio, estagnado. De luz sem graça nem jeito. Nem passaritos se lhe escutam. O que fazer de um dia assim, quando urja em nós ir em busca do que nem imaginamos à nossa espera? Façamos de conta que dormimos de pé, ou sentados, e que uma vaga de sonambulismo nos ensina onde colocar os pés e caminhar à beirinha das falésias. Lá em baixo, o mar, à exacta distância de um salto. Saltemos então, só para ver se acordamos e se a manhã se recompõe desta maleita, que no-la oferece estagnada, feia, de luz sem jeito nem graça. Ou pensemo-nos, aqui de cima, pescadores de cana altiva, para que não passemos pela indeclinável obrigatoriedade de mentir. Bem bastará o peixe que nem comprar saberemos, quanto mais pescá-lo tão cá do alto desta arriba, em que a manhã, porque ilúcida, nos faz arremedar equilibristas em pose sobre a corda das ideias ― a mais frágil de quantas nos tentem os passos e a incerteza de que os queiramos dar.
Ou deitemo-nos mais um pouco e finjamo-nos acordados, enquanto o vaivém das pálpebras mal se ouvir ante o bramido das ondas, tão lá em baixo, à exacta distância de um salto.

segunda-feira, 19 de junho de 2006

A VER O MAR SEM LÁ IR MOLHAR O CU

A manhã está de névoa, grossa, quente. É tempo disso. Em dias como este, pensa-se praia, em almoçar lá, à beira-mar, a haver daquilo que, na catacumba das algibeiras, impõe cor à existência. Dos banqueiros, claro. De quem mais havia de ser? Dos pintores, esses garimpeiros do vácuo, quando a ordem será de abater sem cedências quem renegue a concordata e entre em delírios de salvação ao domicílio? Ainda bem que os pintores não mandam no mundo. Devia ser lindo andar por aí, de cavalete às costas, a impor medidas de liberalização do consumo de erva e forragem afim, de contenção com exemplos a vir de baixo e de cima dos donos da despesa pública, de insofismável aumento das ínfimas percentagens na debelação do desemprego e da precariedade do trabalho em tempo útil, de incentivo ao investimento na produção nacional em fábricas a voar para a estranja, de consecução prática na aplicação da justiça a todos os níveis com as excepções do costume, de enriquecimento progressivo a partir da pertinente exploração dos nossos recursos naturais no combate aos incêndios e ao turismo, de terapêutica na saúde para que mais ninguém precise de a comprar em hospitais privativos ou nos do estado, de favorecimento da educação e do ensino sem ameaças de morte em chegando a hora do primeiro emprego, de empolgamento no fabrico de heróis mercenários pagos a peso de ouro ou a petrodólares em quantos iraques estejam na mira das americanalhices petroleiras, de grande coragem nas doações sem retorno de uns tantos milhões aos craques da bola e seus apêndices e comissionistas por amor pátrio, e do puro. E de arreganhado apoio à arte e aos artistas pintores, esses garimpeiros do vácuo, pois a ordem é mesmo de abater sem cedências quem entre em delírios de salvação ao domicílio e renegue a concordata.
“Acho que é melhor ficarmos em casa. Deve estar vento na praia”.

sexta-feira, 16 de junho de 2006

ESTA PERIGOSA SENSAÇÃO DE ACORDAR PEQUENO-ALMOÇO

Hoje de manhã levantei-me convencido de que era um gafanhoto. Ao chegar à janela, a recolher notícias do tempo, vi que fui visto por um passarito. E se tão depressa não saltasse cá para dentro, sei lá o que me aconteceria. Só depois, ao lançar chapadas de água contra a face, concluí que a ave lá teria as suas razões. Será que o pássaro leu Kafka?
Era averdungado até às orelhas o gajo que do espelho me espreitava, procurando sorrir mas sem achar piada ao filme. Aliás, filme já visto e revisto nem sei quantas vezes: a dentadura, no copo, aguardando que os serviços de limpeza lhe dessem ordem de avanço para o seu lugar; a fumarada quente do chuveiro, a embaciar-me o ecrã e emprestando à ambiência uma certa carga de irrealidade; a balança, nos antípodas, sem óculos, aos gritos, esmagada pela tonelagem a mais; as peças de roupa, em desespero de causa, ameaçando estoirar ante a insistência de sentido inverso; matreiros, os sapatos, cada vez mais tormentosos no calçar sem que as mãos ajudem, e estas, sem braços que até lá tão ao fundo as façam chegar. E depois, entre convulsões e torcidelas do aperta aqui e alarga ali, as tonturas do esforço posicional, as náuseas em função do que assim se pese como sobras de ontem, quando ainda não imaginava que hoje acordaria a pensar-me gafanhoto.
O Franz Kafka finou-se no ano em que nasceu a minha mãe. E se não tivesse morrido tão novo, bem poderia estar vivo no dia em que nasci eu. Será que já posso ir à janela sem que o passarão me pape?

quarta-feira, 14 de junho de 2006

VOOU TRÊS VEZES A CHIAR E DISSE

Aquela casa só tem uma porta de entrada. Nenhuma de saída. Ou seja, por dedução, quem lá entrar, já não sai. E o curioso é que toda a gente lá cabe, sem apertos e sem confusão. Não sei se tem porteiro. Nunca, até agora, eu me atrevi a estar perto dela menos que a distância que penso vir dela até mim. Um dia será, com certeza. Nem que seja por curiosidade de quem se lhe finja indiferente, dizendo que a incógnita nunca fez mal a ninguém, que o porvir é uma treta, que o passado é gente morta, e só o presente justificará o esforço de se estar vivo.
A casa, creio que é além, na rua que começa ao virar daquela esquina. Também nunca lá pus os pés, em tal rua. Apesar de, já por três vezes, ter estado muito próximo de passar por ela, mas sem querer. Foi por um triz que eu não dobrei a esquina, em qualquer dessas três vezes, e acabei por lá cair, sem imaginar onde estava. Um dia será—, repito.
Embora se diga que só morre quem é bom.

terça-feira, 13 de junho de 2006

DA ESCRITA-PINTURA À PINTURA-ESCRITA

A minha escrita em tudo se assemelha à minha pintura. Talvez densa de mais. Talvez crua. Ou talvez mesmo ilegível. Mas consciente. Mas procurada cá dentro, no cavername da galé que me transporta e onde sou remador acorrentado ao remo. Gosto muito daquilo que consigo escrever. Como gosto do que pinto, quando não seja a sobrevivência a impor-me a temática, a técnica, os materiais, as ferramentas, e até a moldura final ou o desprestígio no preço possível.
Publicar ou não, nunca será o mais importante. Mais importante é o gozo que me dá o acto de escrever. Um gozo imediato, íntimo. Capaz de emocionar, por vezes, até ao arrepio dos pêlos mais recônditos do espírito, e de divertir sem demasias, também, para acalmia de certas apetências pessoais de não muito esclarecida objectivação.
Qualquer que seja a forma de expressão, pictórica ou escrita, sempre fui e serei um perfeccionista, já sei. Assumir não custa. Assim fossem todos os meus defeitos, quando de defeitos se trate, o que nem é o caso. Fazer bem o que bem queremos, por mais trabalho que dê, será uma atitude de coerência, de honestidade connosco provinda de nós. É olhar a partir do âmago o que os nossos olhos apreendam na rua e entreguem no âmago, linear mas complexa presunção de labirinto em que não raras vezes nos perdemos, de propósito, do fio recondutor até à porta, onde ninguém esperará por nós de flores na mão. É não pactuar com propostas fáceis só porque sejam fáceis, mas porque não lhes reste um sopro de incógnita, uma vez sujeitas a ponderação por comparação instintiva. E tudo muito bem feitinho. Tudo tão perfeito como flores primaveris na Primavera e uvas maduras no Outono.
Pintar escrevendo, contudo, não é bem a mesma coisa que escrever pintando, como se poderá considerar. Enquanto a escrita se embeleza e enriquece com a aposição de metáforas e demais jogos de palavras em contraste ou harmonia, que o imaginário conseguirá multiplicar sem que se sacie ou desvie do sentido inicial, já o discurso implícito numa tela pressupõe a oferta de tantas hipóteses de leitura, quantas as cabeças vedoras, o que será, de igual maneira, muito rico e muito belo. Mas diferente, bem diferente.
Escrevamos, pois, e pintemos, até que a fome de pintar e de escrever se satisfaça. Quanto à outra, a que rói e faz tolher a pele por dentro, só muito escassos felizardos a satisfarão de todo com escrevinhações ao litro ou pinturices a palmo. Mas isso é já outra história que agora não vem ao caso.

segunda-feira, 12 de junho de 2006

"O CORO DOS ESCRAVOS" (OU "O SOL É DOS BRANCOS")

ABRUNHEIRO - COIMBRA/1978
(Óleo s/ madeira - 168 x 56)
Colecção Particular J.O.
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Ainda imberbe e com acne na técnica e no porquê da pintura, “pintei” mentalmente este quadro, uns quatro anos antes de o pintar deveras, quando pela primeira vez me vi a ouvir com séria atenção o "Coro dos Escravos" do “Nabuco” de Verdi. Prometi a mim mesmo, na ocasião, que um dia pintaria um quadro com esse nome; e que o faria ouvindo em contínuo o “Va pensiero”, hino de afirmação revolucionária numa Itália então sufocada por austríacos e franceses. E assim veio a ser. É óbvio que estes meus escravos nada têm a ver com os que o bom do Giuseppe pôs a cantar na margem do Jordão, os hebreus. Mas tentam ser expressão da força passe a imodéstia que ele, de que soberba maneira, com que sublime encanto, tão bem soube perenizar através da música.
Obrigado, amigão Giuseppe, pelo empurrão que me deste.
José Daniel Abrunheiro, em Coimbra e aos 12 de Junho de 2006

domingo, 11 de junho de 2006

HEROES DO MAR, NOBRE POVO, NAÇÃO VALENTE, IMMORTAL

É difícil de imaginar uma aventura que não tenha heróis. Há-de haver sempre um, no mínimo. E sobre ele recairão os holofotes da atenção de quem goste de viver aventuras ao serão, depois da ceia, entre dois tragos daquela velhinha de muitas décadas a dormir, engarrafada sem rótulo e resguardada no meio de teias de aranha e fuligem de velhice semelhante em tudo. Até nos efeitos de ilucidez consentida.
Herói, aliás, qualquer um poderá ser. Nos tempos que ora decorrem, basta estar vivo. E por isso, ninguém se pasmará até aos forros, se de repente um extraterrestre se lhe meter portas adentro de microfone em punho, batendo-se pelo furo da reportagem em directo, da notícia a transmitir em primeiríssima mão, para todo o infinito passível de se compartimentar e dar a comer através do ecrã.
E quem diz um extraterrestre, diz uma dessas coisas seriíssimas, sem pés-de-galinha ou demais rugas vadias pescoço acima, que começam e terminam em capas de revista a nunca ler além da capa. Então não apetece mesmo ser herói e dar entrevistas e tudo a uma coisa dessas, a mamar olhos ou a olhar mamas ali tão pedintes como generosas?
Haja crianças que se dependurem de altas janelas, velhos moucos que atravessem linhas férreas à hora exacta, senhoras cuja cachorrinha se perca de amores por algum rafeiro e marche atrelada, turistas a nadar em águas proibidas pelo bom senso, alpinistas sem corda que lhes dê para desistir da escalada e regressar ao sopé devagarinho, feras enfim libertas das grades do circo e dos aplausos ao seu domador, incêndios que venham esturrando prédios com águas-furtadas cheias de mãos a gritar, mineiros soterrados pela desdita de já terem vindo ao mundo como mineiros e órfãos, cegos sem cachorro nem bengala nas horas de ponta, mudos a perorar por instalações sanitárias sob compressão diarreica, cadastrados evadidos a nado pelas tubagens do esgoto, ou náufragos de botifarras de borracha calçadas a cinquenta metros de terra firme, onde há mulheres velhas e novas e arrepelões e preces tudo à mistura num molho. Haja a iminência de desastres, naturais ou fabricados pela incúria, que heróis na medida certa hão-de aparecer e fazer-se ouvir em horário nobre.
E haja então entrevistadoras cujas medidas se imponham aos olhos de qualquer herói cujo feito nem nos interesse assim tanto, afinal.

quinta-feira, 8 de junho de 2006

UNIPESSOAL E TOSCO ENSAIO DE MANIFESTO NO PLURAL

Reneguemos o silêncio, quando audível. A mudez, se voluntária, deve ser crime de morte. Procuremos engrandecer a voz humana, oral ou escrita, denunciando a mordaça, auto-imposta ou alheia, por pudor. Gritemos contra aqueles que não gritem contra nós. Gabemo-nos de exprimir o que pensamos ao dia, e à noite iluminemo-nos com o que o dia nos houver segredado como resposta. Atrevamo-nos, a nu, a ser quem somos, para que o mundo se vista à nossa imagem. E façamos lá de conta que somos felizes. Sempre será menos doloroso mentir a quem nos minta ao dizer-se tão feliz como nós.
E calemo-nos também se percebermos que já estamos a falar de mais.

quarta-feira, 7 de junho de 2006

REFLEXÃO SEM ESPELHO À FRENTE

Não, não me sinto velho. Nem perto disso. Já estarei no entanto com aquela idade em que a necessidade de ir arrumando a casa começa a impor-se como prioridade nas opções. Preciso de esvaziar gavetas, rasgar papéis velhos, ultimar ou despedaçar de vez projectos antigos, perenizar em cinza fotografias e cartas de paixões intemporais, doar a quem de direito os meus mais recatados valores, garantir aos meus quadros o destino certo em mãos de gente com olhos, conceder aos meus livros vida eterna junto de quem mais os mereça. Ou, numa só penada, fazer tudo para que os ratos póstumos – e ele andam tantos por aí à espreita – não venham, depois, a aproveitar-se ou a roer seja o que for do que me tenha pertencido.
E preciso de me ir libertando de quem não me interessa. Já comecei, aliás. Quero estar limpo de fantasmagorias quando o Letes me levar corrente abaixo, de barco ou a nado.

terça-feira, 6 de junho de 2006

EM VIAGEM NUMA DE NOSTALGIA VESPERTINO-CECILIANA

Passam vinte e três minutos das quatro horas da tarde. A esta hora, por onde andará ela e a fazer o quê? Paris é uma metrópole gigantesca e com milhões e milhões de habitantes, persistentes, efémeros ou de passagem, naturais, estrangeiros e outros. Com milhares e milhares de automóveis, a voar e a esfumaçar e a esfrangalhar nervos e vidas, numa chinfrineira constante. E com centenas e centenas de jardins e parques e bosques, onde nem sempre só haverá flores e passaritos e cagadelas de celestial pontaria. E com dezenas e dezenas de pontes, trazendo e levando as margens uma à outra, como se as margens se quisessem encontrar de quando em quando ou separar de todo, sem remédio. E até uma ilha, sem oceano que a esconda ou revele a quem à coca de tesouros por aí se perca.

Como encontrá-la? Se houvesse Deus em Paris, talvez ele desse uma ajuda no sentido de reduzir a infinidade de ruas recalcadas à procura. Mas não há. Ou há diversos, cada qual de sua cor e de seu formato, com seus acólitos e coadjuvantes, seus botequins oficiais e seu céu urbanizado à venda por lotes. A qual deles recorrer e jurar fidelidade, acender velas ou rasgar a pele dos joelhos na penedia do chão, para depois obter proventos e lá conseguir enfim descobri-la neste caos de tantas línguas e dentes, cariados ou postiços?

Ainda se ela soubesse que alguém a procura. Mas não sabe. O tempo, desenfreado, escarninho, remordente, lá se encarregou de calafetar as janelas da memória, para que o vento as não injustifique e permita a passagem clandestina das parvoeiras de outrora. O desperdício não tem direito a renovar o contrato com quem dele abusou à tripa forra, como é usual comentar-se em casos de excesso de olhos e escassez de barriga. Portanto, há que pagar o abuso, e com juros. Jura que, se a reencontrares, hás-de vir de Paris até aqui. Pode ser de comboio, de autocarro ou de avião, de bicicleta, tanto faz. A pé, é que não.

FIQUEMO-NOS POR AQUI

Tentando expressar-me de forma genérica, como se não tivesse em mente uma certa e determinada direcção (o que na verdade acontece, não há que negar), cumpre-me tecer algumas considerações acerca do valor semântico de algumas palavras que eu algures me vi forçado a utilizar, num específico contexto, e que me foram “devolvidas” com outra roupagem, que não a que comigo teriam envergado.


– A palavra “recompensa”, por exemplo, um tetrassílabo.


Para quê diminuir a amplitude do seu significado, reduzindo-a a si própria, gramatical e funcionalmente falando? Será mesmo tão difícil concluir que “recompensa” pode ser aquela sensação de aprazimento experimentada quando alguém de quem gostemos sobe na vida por seu próprio mérito? E será também tão complicativo olhar a mesma palavra sob a significância de prémio, nosso ou a repartir connosco, quando o mesmo alguém trava uma luta difícil e sai vencedor? E não será de igual modo compensatório verificarmos reconhecimento pelo intrínseco valor do que tenhamos feito, seja trabalho no campo das artes, seja atitude solidária em momentos de provação, seja ainda e apenas o acto de acreditar em quem já tantas vezes nos desenganou? E não seria tão mais bonito se não tivéssemos de ser nós a chamar a atenção do “astro” para que esse reconhecimento seja visível, vindo até nós como garante de que o futuro ainda suscitará expectativas?


– Passemos agora à palavra “cagalhão”, um trissílabo.


Ao que julgo saber, “cagalhão” é um monte de merda. E um monte de merda também poderá aplicar-se a alguém cujo comportamento nos importe, quer pessoal, quer familiar, quer social, quer profissional, quer afectiva e humanamente falando. Então não é merdoso vermos alguém, a quem nós queremos bem, aparecer sem ser convidado num local onde estejamos a confraternizar entre amigos, sendo desde logo perceptível o torpor com que se arrasta e se pronuncia, dois ou três dias após ter tido alta da sua terceira desintoxicação alcoólica? Então não tresanda a metros o dizerem-nos que esse alguém, depois de lhe ser negado o acesso a bebidas por prévio aviso, teria estado a beber, à socapa, do copo de quem se sentava ao seu lado? Então não chega a ser nauseabundo sofrer-se nos olhos os olhares de outrem, diante do espectáculo degradante que complementará o programa, o de quem, pretendendo-se tão grande (e podendo sê-lo), cai assim tão lá mesmo na merda mais abissal? (*)


– Ponhamos agora sobre o estrado o dissílabo “anão”.


É dos livros e das bocas de todas as línguas faladas em todo o globo que “anão” é um pequenitote, um quase-nada, um pouca-roupa. Um resvés de gente, como dizia o outro ao falar do outro. Acontece que “anão” não é somente isso. Também será aquele que se dá à pequenez de olhar tudo e todos, artística e literariamente falando, tomando-se por bitola única e lá muito por cima de todos e de tudo. Assim como aquele que se diverte com a enunciação pública dos autores que vem lendo, ou que diz vir lendo, à média de uns quatro ou cinco por dia, o que é fabuloso, ninguém duvidará. E também aquele que se arroga a petulância de ministrar lições de gramática a quem delas não precisa assim tanto, como se vê e lê, sempre que no seu imaginário se julga tribuno romano em loquaz dissertação perante uma plebe minorca. E ainda aquele cuja minimidade lhe corrompe qualquer ensejo de visão autocrítica, entendendo como suficiente esta espécie de masturbação internética, com que ele se entretém e fará entreter todo um séquito, devoto e obsequioso, de outros masturbadores em coisa alheia.


Afinal, porque creio estar a perder tempo (e eu já perdi tanto mas tanto neste particular anfiteatro de dois actores cujo texto desde há uns milénios se esgotou), não sei se valerá a pena pegar no “cão”, um monossílabo quase emblemático, embora por aí tão mal usado como rótulo de alguém. Seja pelo próprio alguém, seja pelos mais que se considerarão a sua matilha privativa. Cães, para mim, há só um: o meu Satie, e mais nenhum.


E deixando em paz a semântica, concordemos que muito ficou por dizer. Fica sempre. Como a abordagem da dívida material, para não ir mais longe. É que nem é a dívida material, em si, que mais me corrói as ideias: é a liberalidade com que não se assume a sua assunção. Com que se aproveita a generosidade familiar, sem se pensar sequer em a retribuir um dia, seja quando for. Com que se toma um dispêndio de outrem, como se outrem a tanto estivesse obrigado. Pois que se foda o dinheiro! Eu sei lá quanto é que me custou a madeira comprada há já nem sei quantos anos!...


O que confrange, nisto tudo, é a falta de sentido de responsabilidade evidenciada, ou seja de idoneidade demonstrável, ou seja ainda de honestidade projectável futuro adiante.

E para quê abordar as duas mensagens por mim enviadas, antes de qualquer texto dito "lamentoso", que nem resposta obtiveram?

E para quê assumir agora que entendi por prudente não assistir ao lançamento de um certo livro, em que também tive quota-parte e não pequena, por temer ver-me confrontado com cenas deploráveis, já observadas noutros carnavais anteriores, como as cenas merdosas aí atrás explicitadas, que foram postas em palco poucos dias antes desse mesmo lançamento?


Fiquemo-nos por aqui, que é melhor para toda a gente.


(*) Porque para tanto fui empurrado, foi esta a vez primeira em que eu, dirigindo-me a quem me dirijo, toquei neste tema. Posso provar. Para tanto bastará que se releiam todos os tais textos “lamentosos” publicados neste jornal de parede. Dois textos há, reconheço, mas que não merecerão a honra de figurar nessa categoria, em que eu, autocriticamente, me debruço sobre a temática etílico-borrascosa. Autocriticamente, repito.

A propósito do tema, apraz-me reconhecer também que sempre bebi muito, bebo muito, e hei-de continuar a beber quanto me apeteça, porque sempre soube fazê-lo. Infelizmente, apesar dos muitos avisos e conselhos amigos, houve quem não aprendesse comigo, e foi pena.

Talvez nunca tivéssemos chegado a fazer esta tão triste figura.

Disse.

Figueira da Foz, 4 de Junho de 2006

SARRO MENTAL

Não nego que me dói e que lamento.
Mas mil vezes a morte, ao sentimento
de culpa que não tenho. Nada fiz,
que não fosse aguardar a recompensa
por ter acreditado em quem se quis
gigante, sendo anão e de nascença,
ao que se crê.

Pior que a ingratidão é a indiferença
com que se avilta aquilo em que se crê.

Coimbra, 1 de Junho de 2006

quinta-feira, 1 de junho de 2006

DA IMPONDERÁVEL LEVEZA DA ARTE

Se a cortiça na água não se afunda
e sempre sobre à tona, se a mergulham,
não é cortiça a arte. Nem há água
capaz de a emulsionar sem ter ajuda.

Mesmo assim, sem ser gelo vagabundo,
a arte é uma pedra que flutua.