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PINTOR, POETA E CANTOR, OU FAZEDOR DE COISAS LINDAS COM AS DUAS MÃOS E NÃO SÓ.

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

REVISITA MELODRAMÁTICA A UMA IDADE DE QUE NEM SAUDADES SOUBE GUARDAR

Tornei a vê-la, ontem, e a estar com ela. Fomos, durante todo o tempo em que tanto assim quisemos ser, as mesmas atoleimadas crianças de há cinquenta ou mais anos. Olhámo-nos, como se desse exacto modo, num desvairo, sempre nos tivéssemos olhado, e também nesse exacto olhar nos demos em recíproco, com volúpia e tudo. Mas como ignorar a assombração de nos sabermos acorrentados, que não um ao outro, e alento não termos, nem decerto a menor vontade, de arrogar e atacar as respectivas correntes, porque feitas de carne em tudo igual à nossa e de nós provinda tão sem culpa?
Pese embora a minha suspicaz imparcialidade, se obediente a valores adoptados por quem julga em causa própria, vi que continua linda: os mesmos olhos ridentes de uma verdura onde pastar apetece, a mesma boca miniatural de boneca a que nem falte falar, a mesma pele onde a alvura é testemunho de que as rugas virão longe da hora de fingir que lá não moram, as mesmas mãos tão alvoroçadas como a voz de que se almejam acessório, a mesma voz musical de menina cujas mãos é que serão tagarelas, e o mesmo corpo esbelto e desembaraçado, com tudo ainda em seu lugar, por não ter faltas nem demasias a pesar em olhos de outrem. Fazendo as contas bem feitas, que maravilha é estar vivo e ter o amor como atestado de que vale a pena viver. E que infelicidade é senti-lo tão ao alcance da mão, e reconhecê-lo tão longe, o amor, de nele perceber sequer um aceno solidário, uma promessa a nem supor como passível de ter asas, a fugaz mentira de um beijo perdurável por mais cinquenta ou mais anos. Nunca daquela boca, daqueles lábios de cereja a pedir dentes onde o meu rubor tem espelho, eu tive mais que o efémero simulacro em duplicado sobre as faces, como quem beija o ar e do ar obtém a resposta que alguém pelo ar enviou. E a doçura das palavras, claro, como eflúvio misericordioso para as úlceras, agasalho contra a frialdade nocturna nos becos, sustentáculo em desequilíbrios no percurso através da insanidade outorgada como defesa.
Pudesse eu fugir com ela, hoje, e fugiria. Quisesse ela repartir comigo esta nossa solidão acompanhada, desde sempre repartida à distância e porém aqui tão perto, e eu devolver-lhe-ia o firmamento por ambos soletrado numa ainda tenra meninice. Ou presenteá-la-ia com a outra face lunar, a nunca à vista, para que nela, só nós connosco, enfim nos consentíssemos o desatino da sofreguidão de reconquistar os nem sei bem quantos anos desperdiçados. Aí uns cinquenta, ou mais.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

GUIÃES, ENTRE A CIDADE E AS SERRAS QUE O EÇA CALCORREOU (V)

Passa um tractor na rua, calcetada e estreita e com robustos paredões de cada lado, e tudo aparenta estremecer. Até o ar se agasta e disso dá sinal nos cortinados. Fingindo ignorar o encontrão para trás com que o saudosismo retrógrado (igualzinho ao que acompanha os ponteiros do relógio) tem por costume denunciar-se, reconstruo na mente a paz pachorrenta dos carros de bois de outras eras, a chiadeira das rodas e os brados de simulada impaciência do camponês condutor, o resvalar sem susto das patorras desferradas no empedrado, aquele odor ímpar das bostas alijadas do alto sem parcimónia como bostas, a iniquidade pontual do aguilhão não simulada, a danação dos milhares de moscas trazida a reboque pela cauda, e sinto pena. Mas o tractor é veloz e já lá vai longe, levando o bramido das válvulas para onde lhe requeiram os serviços com celeridade e eficiência, enquanto a mansidão da parelha ruminante, apesar da poética passadista recomendada por um ou por outro sentido, nem ao fundo da rua, e a descer, teria chegado. Malhas que o império tece, como disse o vate dos heterónimos a propósito de outra conversa bisonha de que fazia parte um miúdo, um lenço e uma cigarreira breve. E não sei se na actual conjuntura não será mais caro um molho de erva, ou de palha, para os cornúpetos, que o carburante exigido pelo tractor.