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PINTOR, POETA E CANTOR, OU FAZEDOR DE COISAS LINDAS COM AS DUAS MÃOS E NÃO SÓ.

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

RELATÓRIO DE VIAGEM POR ADIANTAMENTO À INCÓGNITA NA HORA DE IR JÁ OU NÃO

Resolvi começar hoje a preparar a minha saída de cena. O papel cujo desempenho me cabe está perto do fim. Nenhuma deixa me invoca ou provoca o discurso. E até o público esse monstro com quem em boa medida eu me arrogo ou identifico, se de pé me aplaude ou vitupera e arrasta mesmo ao escárnio do paroxismo —, até ele estará a ficar farto de mim. Quanto à peça exposta em palco, dramalhão ou tragicomédia para bonifrates sem cordel bastante, admite desde o remoto arranque a pressuposição de todo o enredo, adiantando-se-lhe pois um final de tal forma previsível, que até faz doer as maxilas de tanta risota com o cair do pano sobre a morte do principal protagonista. Legitimar-se-á então o estrondo da pateada como sublinhado das vénias.
De toda a minha vida vim fazendo uma metáfora de metáforas. Nelas tentei representar, qual escrita hieroglífica não decifrável por outrem à primeira espreitadela, tudo o que mais me penalizasse saber sabido de mim. Não prodigalizaria, portanto, o despejo na rua de quanto me fosse mais íntimo, de quanto mais fundo eu soubesse nas catacumbas de meu ingresso exclusivo. Nunca me afoitaria ao sacrilégio de despir em praça pública os arrepios da minha mais nua nudez. Ainda assim, bastas vezes me abalancei à coragem da imodéstia, nanja jactância ou vaidade, ao comparar sem desfavor nem melindre o meu trabalho ao de mestres consagrados pela crítica. E nunca por tal motivo me doeu a vista ou o palato se me encarquilhou de raiva. Nunca o perfume das flores deixou de me confundir ou o chilreio dos pássaros me arrancou das unhas a batuta. Nunca pelo mesmo ganhei ou perdi verticalidade e argumentação acerca do impulso menor ou não tanto a imprimir ao andamento, quando a gentileza da inércia o aconselhou.
Urge arrumar a casa. Lavar, limpar, rasgar, varrer. Rematar projectos em sua hora despejados no papel, ou deles aproveitar esse papel para embrulho de tantas mais perdas de tempo nem iniciadas. Restituir ao lixo o lixo ainda com aspirações a um lugar à mesa. Distribuir a quem valia me prove o meu pecúlio, traduzido por tudo aquilo que mereça a natural sobrevivência a seu dono, ou acaso haja escapado à varredura eutanásica. Apagar quaisquer sinais de passagem através de matagais em demandas predadoras, consumadas ou reduzidas a mero exercício profiláctico dos dentes em carnes rijas ou tenras. Destruir sem pena o firmamento congraçado sobre cada nova experiência de emancipação do discurso a pedir pernas para andar.
Sonhei ser maior que o meu sonho de não ser pequeno. Quis ter poiso na corte dos iluminados de menos luz que a minha. Almejei construir para mim uma torre isolada num monte acima das nuvens, ou só com o céu como telhado, ainda que roto. Exigi-me somente a perfeição em quanto me fosse caro criar, para que a ceifa terminal me inflamasse o desejo de sempre aperfeiçoar o imperfeito. Abominei farsantes dados à pesca sem aparelho e em águas dúbias, ou na verdade parasitas sob custódia da proximidade sanguínea. Arranquei-me de vez à parentela de que deveras nunca soube por vergonha de a saber. Comprei-me no mercado vital a liberdade viável a preço de saldo, apesar do fantasma da corrupção me sobrevoar a progressão aventureira pelo deserto dos sentidos. E atapetei de pregos toda a senda a calcorrear descalço, para que da memória me não perdesse em divagações da inventiva.
A quem me ler, um derradeiro aviso: a vida é o lapso percorrido entre dois pontos unidos pela mesmíssima distância que os separa. Inútil é procurar dar-lhe maior dimensão impondo-lhe curvas ou ângulos, ou outros quaisquer sucessos contrários a essa espécie de geometria dita existência. no fim se saberá da sua exacta extensão. Se tal extensão se fizer comparar à de uma viagem, entretanto, toda a gente, menos o embarcadiço, dela poderá ter conhecimento a rigor.