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PINTOR, POETA E CANTOR, OU FAZEDOR DE COISAS LINDAS COM AS DUAS MÃOS E NÃO SÓ.

segunda-feira, 29 de maio de 2006

ANTEVISÃO POR ANTECIPAÇÃO ESTRATÉGICA

Acabei agora mesmo de morrer. Experiência inédita em mim: a de um instante imediato a outro instante, sem que entre ambos se verifique nexo de continuidade. E como é que um instante se mede, se isola dos demais, se alonga ou se encurta? Num deles, ainda por lá, havia luz e sombras dela resultantes. E no outro, domina a sombra, e é a luz que dela deriva e se nos derrama aos pés e nos persegue os passos. Como que um negativo fotográfico a não dispensar os ácidos de revelação e a impor-se-nos de horizonte a horizonte.

Desta janela, porque de uma vulgar janela se trata, vê-se o pedaço de mundo onde antes sobrevivi; vêem-se as pessoas conhecidas – só as conhecidas –, que depois de mim morrerão, tarde ou cedo; e vê-se o estendal das minhas asneiras, numa exposição permanente, para que todos saibam quem fui, o que fiz, o que prometi fazer e o que se ficou pelo intento envergonhado de ultrapassar a intenção.

Não é verdade que reencontremos aqueles que nos antecederam, por muito queridos que nos tenham sido. Cada qual estará em sua janela, e por ela contemplará a sua parcela de mundo, as pessoas com quem conviveu, e o seu mostruário de erros.

E também não é verdadeiro que possamos ser invocados por médiuns espiritistas, para que através deles respondamos a quem lhes pague a invocação. Da janela vê-se tudo, a qualquer hora, de dia e de noite; e vê-se tudo o que vão fazendo todos aqueles que de nós fizeram parte, que percorreram connosco o nosso tempo, que nos amaram ou não; e vê-se tudo o que hoje murmuram sobre nós, o que de nós ficou neles, ódio ou benquerença, saudade ou alívio. Para que haveremos nós de lhes responder pela mão de vigaristas?

E falso é, ainda, que este edifício – com biliões e biliões de janelas, uma para cada um dos biliões e biliões que já cá estavam onde estou, desde há milénios, e hão-de vir nos milénios reservados ao futuro, se o houver – seja pertença do céu ou do inferno, desta ou daquela seita, de um ou de outro deus todo poderoso e com maior ou menor cauda de devotos rastejantes como lesmas.
Por aqui, ninguém é propriedade de ninguém. Não há tabuletas que demarquem territórios de acção. Não há estradas, nem bermas, nem veículos, nem proibições de sentido, nem qualquer obrigatoriedade de paragem, nem polícias façanhudos a passar multas por demasia de excessos ou por excesso de faltas.
E também não há, aqui por estas bandas, imbecis sem sexo mas com asas, vestidos de branco e rosa e faixas em azul cerúleo. É mentira. Anjos, se os houvesse, seriam esses muitos milhares de crianças que morrem e vão continuar a morrer, todos os dias, de fome e pestes e guerra, sob o santo sinal da cruz vindo de Roma.

Peço mil perdões, descuidei-me. Deixei que o meu verbo se fosse em perseguição dos celerados que hoje comandam o mundo, onde eu, afinal, já nem estou. Acabei de morrer, como vos disse no princípio desta perlenga. E vou a enterrar amanhã. Por favor, não quero flores, nem padre, nem cruz erecta ou pendente, nem a imundície dos lenços de pranto e ranho, nem velhas lavadas em água benta, nem anedotas sussurradas no rabiosque do cortejo.

E nem sei se quero ir já. Não haverá hipótese de me anular a viagem?