ESTA PERIGOSA SENSAÇÃO DE ACORDAR PEQUENO-ALMOÇO
Hoje de manhã levantei-me convencido de que era um gafanhoto. Ao chegar à janela, a recolher notícias do tempo, vi que fui visto por um passarito. E se tão depressa não saltasse cá para dentro, sei lá o que me aconteceria. Só depois, ao lançar chapadas de água contra a face, concluí que a ave lá teria as suas razões. Será que o pássaro leu Kafka?
Era averdungado até às orelhas o gajo que do espelho me espreitava, procurando sorrir mas sem achar piada ao filme. Aliás, filme já visto e revisto nem sei quantas vezes: a dentadura, no copo, aguardando que os serviços de limpeza lhe dessem ordem de avanço para o seu lugar; a fumarada quente do chuveiro, a embaciar-me o ecrã e emprestando à ambiência uma certa carga de irrealidade; a balança, nos antípodas, sem óculos, aos gritos, esmagada pela tonelagem a mais; as peças de roupa, em desespero de causa, ameaçando estoirar ante a insistência de sentido inverso; matreiros, os sapatos, cada vez mais tormentosos no calçar sem que as mãos ajudem, e estas, sem braços que até lá tão ao fundo as façam chegar. E depois, entre convulsões e torcidelas do aperta aqui e alarga ali, as tonturas do esforço posicional, as náuseas em função do que assim se pese como sobras de ontem, quando ainda não imaginava que hoje acordaria a pensar-me gafanhoto.
O Franz Kafka finou-se no ano em que nasceu a minha mãe. E se não tivesse morrido tão novo, bem poderia estar vivo no dia em que nasci eu. Será que já posso ir à janela sem que o passarão me pape?
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