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PINTOR, POETA E CANTOR, OU FAZEDOR DE COISAS LINDAS COM AS DUAS MÃOS E NÃO SÓ.

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2007

"DO SÍSIFO MILENÁRIO AO QUARENTÃO" EM REVISITA TÃO TARDIA COMO TODAS

"DO SÍSIFO MILENÁRIO AO QUARENTÃO"
Abrunheiro-Coimbra/1994
óleo s/ tela - 60 x 100 cm (colecção do pintor)
*
Sísifo, rei dos Coríntios, era um putanheiro daqueles. E está a pagá-las bem pagas, se está, ainda hoje, passados milhares de anos. Logrou dar a volta à cabeça de Egina, ninfa deslumbrante, filha de Asopo, e a este mandou recado a dizer que o raptor fora Júpiter, patrão todo poderoso do bordel olímpico. Retaliando tanta insolência num tão insignificante como atrevidote reizinho, o deus dos deuses recorreu aos préstimos de Tánatos, a morte, ordenando-lhe que de imediato desse destino ao garraio, levando-o para bem longe do reino dos vivos.
Contudo, porque era arteiro e desembaraçado, o rei de Corinto não se atemorizou perante as vestes obscuras de tão sinistra entidade, e teve ronha e engenho para ludibriar o lacaio divino, conseguindo mesmo o prodígio de o meter numa masmorra e de assim impedir que alguém, quem quer que fosse, morresse no mundo durante anos e anos.
Queixou-se Plutão ao irmão, porque a barca de Caronte apodrecia no cais, não tendo almas passageiras que lhe dessem movimento e razão de ser contemporizadora da sua manutenção. E Júpiter fez questão de sossegar o mano, dono das trevas, obrigando Sísifo a libertar Tánatos e a submeter-se sem detença à condenação anterior.
Preparando-se para acompanhar o verdugo até aos infernos, rogou-lhe uns minutos mais para dizer adeus à sua esposa, a quem recomendou, ao ouvido, para enorme estranheza daquela, que o não enterrase após a morte, e ela, obediente, desvelada, amantíssima, fez grande questão de cumprir dele a derradeira vontade, expressa e selada num último e quase infinito beijo.
Já bem no centro da Terra, o lugar escolhido pelos deuses para sediar a fornalha do Inferno, entre magmas ardentes e fumarolas de enxofre, roía-se Sísifo entre lamentos e injúrias à esposa que lhe não prestara quaisquer honras fúnebres. A pérfida companheira nem sequer tivera o esmero de lhe dar sepultura e verter uma só lágrima. Urgiria, pois, o regresso à superfície, se possível, a fim de que se soubesse punida tão inultrapassável prova de ingratidão. E tanto gemeu e barafustou junto do deus guardador dos mortos, Plutão, que atingiu os seus propósitos, sendo enfim autorizado, por muito breves dias, a subir ao mundo dos viventes. "Por muito breves dias"–, jurara ele, Sísifo, com contrição a manifestar-se entre esgares patéticos, ao carcereiro.
Logo que viu o Hades para trás, ou para baixo, rumou até longes terras, e resolveu que nunca mais voltaria a enegrecer a vista naquele crepúsculo infernal de dolorida memória. “Viver é lindo”– ululava ele aos ecos de quantos desfiladeiros e montanhas calcorreava à toa.
Volvidos muitos anos sobre a fuga, começou a alquebrar-se e a sentir que já não tinha forças para prosseguir a luta contra os deuses, contra a morte, decidindo assim render-se e assumir a sua sina. E de novo se viu transportado chão abaixo até às catacumbas do mundo.
Plutão, incapaz de perdoar o ludíbrio de Sísifo quando ainda jovem e pleno de viço, desta vez acautela-se e impõe-lhe uma função em que nem um momento de descanso lhe sobeje, coarctando, pois, qualquer ensejo de evasão: empurrar pelo monte acima um penedo gigantesco, que uma vez no cume se lhe furta das mãos e rola outra vez até lá ao fundo, para que o desgraçado volte a descer em corrida e recomece o suplício de carregar o calhau até ao alto. E isto, vezes sem conta, sem outro objectivo que não seja mesmo o de não ter objectivo à vista.

Em idêntica pose, este meu Sísifo quarentão (então), milhares de anos depois, a carregar o tempo em falta e a falta que ele já me faz. E tanto ou mais putanheiro que o Coríntio –, acrescente-se.