http://photos1.blogger.com/blogger/4837/2733/1600/moi4.jpg

umbilicativo

A minha foto
Nome:
Localização: Coimbra, Portugal

PINTOR, POETA E CANTOR, OU FAZEDOR DE COISAS LINDAS COM AS DUAS MÃOS E NÃO SÓ.

sexta-feira, 27 de outubro de 2006

RETRATO DE FAMÍLIA (EM DIA DE ANOS)

Há já oitenta e dois anos, num hoje em nada igual ao que aí vai, meu pai, que quase a viu nascer, ficou atento. Talvez um pássaro de cores mirabolantes lhe tivesse chilreado que seria aquela, nem mais, que o faria ganhar asas e ascender. Não subiu muito.

Mas nem do chão levantaria um pé, não fora ela. E pena é que de tão profícua obra, por ambos produzida quando a invernia trespassava o tempo e em pleno estio se lhes impunha, pouco ou nada de válido se aproveite. Que o diga eu, e não só.
(Foto roubada à Iké, que está com ela)

quinta-feira, 26 de outubro de 2006

COMO SE UM MARTELO PNEUMÁTICO EM VEZ DE TECLAS

Ora então, estou eu, enroscado em frente a mim, a tentar ler no que escreva muito mais que quanto, ao escrever, me virei lendo. Marmota de rabo na boca? Cachorro a perseguir a própria cauda? Espelho com a imagem à minha beira, aquém do vidro, e não lá dentro? Ou com os dois lá dentro, lado a lado, a olhar cá para fora, o que equivale a dizer para onde se sabe não estar ninguém a espreitar-nos?
É ilusão pensar que alguém em nós nos lê, um outro eu, e de nós nos diz aquilo que nós em nós reneguemos como à lepra em mãos alheias, quando em aproximação. O que no fundo se tenta, é dulcificar tudo o que nos reconheçamos suspeito diante dos olhos de outrem, sequazes da javardice para gozo de chocarreira usufruição no imediato. E estar a mostrar o jogo, deste modo, a adversários de tão falaciosa índole, é no mínimo um pretexto para que não nos acusemos da não assunção de falhas, quando falhas prevaleçam sem que saibamos, sabendo, em quem se situam elas.
Sabeis que mais? Que se fodam a literatura e os literatos, que se fodam os artistas e a arte. E que viva a anarquia plenipotenciária. Que a cada qual o que é de todos, e a todos o vice-versa. E que viva o amor entre os insectos, à primeira vista ou já pingante de maduro. E que o futuro avance e se transforme em presente e se fique por aí, sem cair na peta de subir ao cadafalso do passado. Basta de história.

sábado, 21 de outubro de 2006

SINA DE GASTRÓPODE, A DE QUEM REMENDE INSÓNIAS À MÃO

Noite ainda sobre a estrada. A humidade leva os caracóis a atravessar a via sem respeito pelo código, o que os conduz ao desastre dos maus encontros com eventuais trajectórias coincidentes num ponto: aquele onde se lhes acaba a travessia. Tivessem eles um melhor modo de ver e de dar a ver o seu trajecto às escuras, e muito menos preocupante, para eles, seria a sinistralidade nesta incerteza dos tempos em que a chuva se torna exórdio, tema e epílogo de quanto haja a dizer.
Eles que falem, pois, esses ranhosos, que trazem a casa no lombo e se permitem esta doidice de saltar tão cedo da cama. Aonde irão, assim, com tanta pressa? Ainda vem tão longe o dia, que nem horas serão de dar vazão ao deflúvio da bexiga atascada pela quietude da noite. Mas já que por cá estamos, seja.
Estas coisas ao ar livre têm outro gosto.

sexta-feira, 20 de outubro de 2006

ÍCARO MEIO OUTONAL MEIO INVERNENTO OU DE ASAS MURCHAS

Por alguma razão o Outono, secundado pelo Inverno que se lhe segue, é a época do ano mais propensa aos suicídios. Este céu encoberto por borralha desde há muito enregelada, esta já quase mórbida longuidão das vergastadas de chuva contra a translucidez das vidraças, este frio feito de suor a escorrer por fora e por dentro da pele, esta penumbra a alongar a distância entre o desejo e o ensejo de chegar a algum ponto idealizado sobre a rota, este luto carregado pelos olhos de quem já se desacostumara de sorrir à nascença, tudo isto incha como tempestade em gestação anunciada por asas aflitas de pássaros. Tudo fará pender o cenho para o plano oposto ao sempre grato privilégio de voar pelos céus afora, estrelas arriba, além nebulosas.
E quanto maior tiver sido a veleidade de subir, menor a probabilidade de escapar com vida ao trambolhão nas nuvens do chão abaixo delas.

terça-feira, 17 de outubro de 2006

AQUI JAZ O PRINCÍPIO DO FIM QUE NINGUÉM VIU COMO E ONDE COMEÇOU

Optemos por esta pedra. Estará aqui há quantos milhões de anos? Viu surgir e viu sumir os dinossauros, garantiu calor a répteis que hoje são pássaros e comem répteis, assistiu ao parto do homem e até deu conta da explosão de quantos deuses ele viria a dar à luz, contou e recontou a mortandade de milhares de guerras à volta, ouviu as patranhas do amor carnificado em milhentas línguas diferentes, espreitou a divisão dos saques de múltiplas civilizações de larápios, ofereceu protecção e sombra a romeiros mais antigos que o próprio santo venerado, serviu de marco fronteiriço a hordas e hordas de invasores depois invadidos, tornou-se oráculo de assombramento e evocação de almas esquecidas do corpo em que em vida se fariam transportar, conseguiu fama como antro de bruxos e bruxarias e bruxedos em noites de lua cheia, fez-se holocausto para sacrifício de bichos e de gente a gente e a bichos que se afirmavam imortais e produzidos por prenhez divina, proporcionou pão e leito a aves remotas em peregrinação sazonal, instituiu-se covil de tosco improviso para lobos esfaimados e raposas mal paridas ante a sanha de caçadores desagradados de mentir, ergueu-se como padrão de encaminhamento de pastores nómadas e seus rebanhos roubados a rebanhos sedentários sem pastores por perto, inspirou poetas e vadios sem letras nem presunção, deu alento a moribundos e à sua guarda os deixou sepultar, tremeu conforme tremeram as tripas terrenas, sofreu o desgaste milenar de borrascas sobre borrascas e o roedoiro da água de quantas mil enxurradas intentaram derrubá-la, a pedra, desde o ovo que a pariu. Bem mais longa que a vida, será a morte, e tão mais lesto o trajecto entre o ocaso e o olvido.
Que o escopro e o maço tornem ao malote da ferramenta. Uma pedra de tal gema não merece a morte às mãos de qualquer pedante armado em escultor. Ou em escritor de epitáfios a esculpir ou não.

quinta-feira, 12 de outubro de 2006

QUAL SEGREDO QUE MUITO APETEÇA NÃO REVELAR PARA JÁ

Tal-qualmente o navegador português que em tempos de antanho se fez ao mar a soldo do imperialismo da cristandade castelhana irmão gémeo do que morava na banda de cá da fronteira –, tenho eu de mim a promessa de dar um dia a volta ao mundo, ou quase. Pelo ar ou por mar, a nado ou a pé, tanto fará, pois, também como com ele aconteceu, é já ideia fixa não regressar ao cais de partida, ficando-me por lá, nos antípodas, onde de mim não se saiba.
Antes por minhas mãos sepultado no vácuo de alguma falésia de cem metros sobre um mar de tubarões, que exposto a ser pasto de prantos aniversariantes, ou de flores coadjuvantes, ou de missas sufragantes, ou de lamuriantes homenagens com disputa de encómios e saudações correlatas à memória. Antes a grandiloquência do silêncio derramado sobre o nome e a obra de alguém que se fez evaporar sem rasto, que a viscosidade dos soluços de encomenda, aquando da devolução à terra daquilo que, de acordo com o texto impresso na cabeçorra dos crentes, dela teria brotado há um ror de milénios.
A hora aproxima-se, a cada hora que passe. Mas não será por ora que os sinos e sinetas de todo o mundo se farão reunir em conjura e bater a uma só voz a minha hora.
Quando ela chegar, nem a mim eu me darei notícias dela.

quarta-feira, 4 de outubro de 2006

EM DIA DE ANDAR A MONTE PELO CRIME DE TER NASCIDO

Se bem que não goste de os festejar, o que eu compreendo e respeito, o meu mais íntimo amigo faz hoje anos. E quantos faz ele? Tanto fará como fez, pouco lhe importa. O importante, afinal, fazendo as contas, é não deixar que cada dia morra sem ter parido outro em seu lugar, é acordar noite alta e ver luz de estrelas onde só nuvens rapaces virão pairando, é ter direito ao pasmo de estar vivo entre viventes, mesmo que mortos, e seus pares já replantados. E será não ceder o passo aos detractores da coisa artística, enquanto gesto de espontâneo impulso a perenizar-se por si, aos imbecis colectores de esgotos como modo de estar emboscado no mundo, e também aos pobres de espírito, porque deles, está prometido, há-de ser o reino dos céus, porquanto com tão pouco se contentam e fingem nutrimento e roupagem.
Ninguém, além dele, desse meu amigo, tanto de mim saberá, se a tudo em mim ele tem acesso, tudo comigo reparte, tudo escuta e corrobora e até subscreve ou complementa.
Não tive, não tenho, não terei pejo algum em considerá-lo, de coração nestes olhos que nunca de frente me olharam, como o único ser vivo autorizado a descer, a meu lado ou a sós, às mais fundas cavernas da minha intimidade. Daí, como disse, ser ele o meu amigo mais íntimo.
Por estranho que pareça, é também o maior dos meus inimigos.

segunda-feira, 2 de outubro de 2006

TRAGICOMÉDIA DA DOR A ESTREAR DENTRO EM BREVE

É incómoda, insidiosa, passível de nos confundir o sentido da atitude a incutir ao pensamento, porque reveladora do medo ante a eventual transparência da nossa impostura, a sensação experimentada quando se fala com alguém ciente de que irá morrer daí a nada. É na verdade aflitivo olhar a aflição daqueles olhos que se nos agarram como lapas à penedia. É confrangedor nem imaginarmos sequer quais as palavras cujas arestas de vidro não façam sangrar o ouvido. É patética a noção de que a vitalidade por nós demonstrada pode provocar sofrimento a quem em si já não a sinta. É demolidor o escárnio da injustiça de ver consumar-se, momento a momento, o incontornável. E até chegará a ser macabro que a imaginação nos anteponha a ruína daquelas mãos que nos gritam ao apertar-nos as mãos, para nem falar das tais lapas agarradas à penedia dos nossos olhos, que nem olhos moribundos.
Dói muito que um amigo se vá sem que nós saibamos, pelo menos, se o soubemos merecer.