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PINTOR, POETA E CANTOR, OU FAZEDOR DE COISAS LINDAS COM AS DUAS MÃOS E NÃO SÓ.

terça-feira, 7 de novembro de 2006

O PÃO NOSSO DE CADA DIA NOS TRAZEI HOJE NOS DENTES

Pessoas há cuja sensibilidade as leva a tomar como fidedignas as mais inverosímeis histórias, porque elas se alicercem em valores de elevado quilate, tão raros nestes pérfidos tempos que correm e tudo esmagam sem olhar o quê. Valores que não são a caridade, a comiseração, nem qualquer desses cuja magnanimidade só se derrama enquanto houver olhos por perto. Mas que serão a solidariedade, o altruísmo, a bondade de mãos dadas ao pundonor na busca da resolução dos problemas de outrem, e tudo sem a mínima obrigatoriedade de premissas indutoras ou compensatórias garantias no fim. Sobretudo quando esses valores de referência, entre tantos a referir, se tornarem inteligíveis através de paradigmas, que não fábulas com bichos falantes, colhidos ao vivo no denominado reino animal. Ainda por haverá pessoas assim. O meu pai era uma delas.
Lembro-me bem de quando ele nos contou, de olhos incendiados por fantasmagorias benfazejas, a velha história do cachorrito que todos os dias, amestrado pelo dono, ia à padaria com uma saca de pano buscar o pão matinal, arteiro e donairoso por se sentir útil. O padeiro, amigo dos dois, cão e dono, cumpria o combinado, metendo na saca os pães requeridos, que o portador orelhudo levaria para casa.
Até que um dia, quando o cão voltou da missão, o dono reparou que o padeiro se enganara ao contar somente cinco pães e não seis, como teriam acordado. Mas não ligou. Um engano a qualquer um acontece, não fora propositado, decerto. Poderia falar-lhe no assunto, quando lá fosse pagar, e acertariam as contas.
Na manhã seguinte, contudo, também faltava um pão. E no outro dia a seguir e no outro e no outro. O cliente lesado decidiu-se então, e foi falar com o amigo padeiro, que, aturdido, se desfez em mil desculpas, mas negou ter-se enganado e logo ao longo de tantos dias a eito. Que de modo algum. Algo de errado andaria por ali.
Sopesadas todas as hipóteses – o cão era manso e talvez alguém disso se aproveitasse e lhe tirasse um pão por ter fome, por brincadeira, ou apenas por maldade –, resolveram em conjunto continuar o que todas as manhãs fariam, e seguir o animal, de longe, aquando do regresso a casa com a encomenda nos dentes. E assim foi feito.
No outro dia, o cachorro deixou a padaria com os seis pães na sacola, sob a vigilância de ambos, padeiro e cliente, e lá seguiu até casa pelo trajecto habitual. Todavia, ao passar por um enorme silveirão ao lado do caminho, viram-no embrenhar-se nele e nele se sumir durante uns momentos. E também o viram, depois, sair de lá e retomar a jornada, todo lampeiro, abanando a cauda.
Quando espreitaram pelo buraco no matagal, em que o mandarete se tinha entranhado, o que viram eles? Viram um pão, isso viram, a ser devorado com os dentes todos por uma cadelita, magérrima, que por sua vez se veria devorada, por sucção, pelo desespero da ninhada de também esfaimados filhotes agarrados à vida através dela.
Verdade? Fantasia? Que importa? O importante é acreditar sem peias no exemplo dos animais. Ou seja, por exemplo, em nós. Mas pouco.