http://photos1.blogger.com/blogger/4837/2733/1600/moi4.jpg
A minha foto
Nome:
Localização: Coimbra, Portugal

PINTOR, POETA E CANTOR, OU FAZEDOR DE COISAS LINDAS COM AS DUAS MÃOS E NÃO SÓ.

sexta-feira, 3 de novembro de 2006

TALVEZ POMPA E CIRCUNSTÂNCIA A SOAR EM MARCHA À RÉ

Nem tudo é mau na miséria. De quando ela imperava cá pelas minhas bandas, lembro-me em particular de alguns cheiros. Como o do sabão amarelo nas tábuas do soalho mal acabado de esfregar, com moedoiro de joelhos, à força de escova e nervos. Ou o da roupa lavada e corada ao sol na torreira dos areais semidesérticos do rio. Ou o da broa a sair, quentinha, da fornada semanal. Ou o do café de mistura a fumegar nas canecas esbeiçadas sob a carestia expressa pelas dentuças. Ou mesmo o dos morangos a roubar do quintal vizinho. Ou ainda o dos colchões de folhelho, com algum mijo clandestino a apodrecer-me a lembrança e a votá-la ao degredo. Ou até o que emanava das fossas de improviso, escavadas em terra de outrem, no monte.
E também subsiste a memória de alguns sabores perdidos na voragem de soterrar tais tempos, como o das sopas de pão no sobredito café de chicória com leite, e tudo feito na véspera para lhe apurar o gosto que a manhã devoraria. Ou o das tortas de milho com sardinhas dentro, de quando em vez, na fornada da semana. Ou o das batatas fritas, já frias e comidas à mão da marmita que comigo as transportava. Ou o do pão com banana a substituir refeições, quando sobejavam dentes e faltava o quê a morder com eles.
Ainda assim, com maior ou menor recarga de nostalgia a recolorir os sentidos, puta que pariu a miséria e aqueles que dela tirem proveito.