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umbilicativo

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PINTOR, POETA E CANTOR, OU FAZEDOR DE COISAS LINDAS COM AS DUAS MÃOS E NÃO SÓ.

terça-feira, 25 de maio de 2010

DESTE MEU ESPÍRITO LUSITANO DE VIAJEIRO POR COMPULSÃO À DESCOBERTA

Nada deve haver de mais apelativo à fatalidade da introspecção que a serena contemplação das labaredas numa lareira. Haja lareira, que as chamas e o braseiro logo se transformarão em tear de pensamentos a calcinar em contínuo. O problema maior, quando como problemática se entender a abastança, é nunca faltar substância pensante para que em força se mantenha o fogo.
Uma vez mais me acossa, com nitidez de espectro a assombrar-me os últimos passos a dar em torno de mim, a já trivial imaginação da gare ferroviária onde virei a ser o derradeiro embarcadiço a tomar assento junto à janela. Ninguém mais viajará comigo. Mas é importante que o lugar na carruagem me permita a visão total da envolvência e o efeito da luz em correria ao contrário do sentido que me leve. É preciso que nada, então, me convença ainda da possibilidade de parar na berma e de alterar a direcção antes planeada. Só assim atingirei o cais remoto, algures na dispersão própria do olvido, onde penso que me seja lícito e salutar o desembarque. A bagagem, que não levarei comigo, não me pesará nos braços. E a viagem de regresso, como é de fácil conjectura, sempre se soube fora de quaisquer projectos.
Não sei desde quando é que esta imagem, a da estação de caminho de ferro para um único comboio, um só passageiro e apenas uma viagem de abalada sem retorno no calendário afixado, me vem perseguindo a sombra através do côncavo intestino da mioleira disponível espécie de poço sem fundo ao alcance dos olhos, onde a expectativa de por ele me aventurar até aos antípodas, ao lado de lá da razão, chega e sobeja como fundamentação de existência e manutenção em actividade, que nem vulcão a pôr ao léu as vísceras sanguinolentas do planeta. Talvez já desde antes da gota vital de que vim a ser consequência indesejada por quem tão azarado pingo vazou em chão fecundo. Melhor fora que a pingadeira, ao fomentar o alívio, se tivesse valido das mãos nalgum refojo e na aridez do pó repisado me derramasse.
E enquanto o imaginário insiste em me infligir a lisura refulgente dos carris como esteira de navio a acometer o oceano, também a ruindade da lembrança me impinge a velhorra gesta do velho que, andando em busca de lenha, no monte, debaixo da mais medonha das intempéries que até àquele momento o teriam levado a arrepelar as cãs por fora e por dentro, clama em desespero pela morte. E quando esta, em forma de uma belíssima mulher de negro trajada, no meio de um relâmpago se lhe apresenta e lhe pergunta o que quer dela, o ancião diz que dela nada pretende, senão que o ajude a pôr às costas o diminuto braçado de caruma e gravetos recolhidos. Sei eu, agora, se de igual modo, ao ouvir o resfôlego da máquina na estação de fim da linha, não me direi qualquer coisa semelhante à que o velhote da historieta se apressou a responder à deusa vestida de preto. Em lá chegando, verei.
Então eu não comecei por afirmar que nada haveria de mais apelativo à fatalidade da introspecção que a serena contemplação das labaredas numa lareira? E é verdade, ainda que, como esta, esteja apagada.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

À SÃO, O GESTO PORVENTURA FÚTIL DE NÃO CONSEGUIR ESTAR CALADO (II)

A minha grande muito grande amiga Conceição Taborda, no meio de grande sofrimento e não somente dela, veio a finar-se anteontem, aos 27 de Janeiro de 2010. Como eu gostaria de acreditar naquilo em que ela acreditava e desejar que a terra, sem quaisquer culpas no processo em progressão, não se limitasse a desfazê-la como se desfaz uma flor a que se roube o ar e a luz, mas antes a tomasse como semente a florir de novo, um dia, em plena pujança. Aqui, entre nós, ou onde quer que fosse. Ela mereceria. E nós, uma vez mais afortunados, tudo faríamos também, decerto, por merecê-la.
Em Coimbra, a 29 de Janeiro de 2010

domingo, 17 de janeiro de 2010

À SÃO, O GESTO PORVENTURA FÚTIL DE NÃO CONSEGUIR ESTAR CALADO (I)

Com claro e já apaziguado entendimento do mal que a consome, uma grande muito grande amiga minha está a morrer. E nestes momentos, mistos de incredulidade e raiva inútil, é que eu meço a distância entre quem virei sendo agora, ainda aquém do salto libertário, e quem serei depois, após a ultimação da remessa à posteridade desinteressada em ser pegada no lameiro circunstante ou borradela em merda própria, à impostura complacente nas conversas entre os antigos companheiros de travessia, ao mais que fundamentado silêncio enfim gritado ante a surdez criminosa que o fez ouvir. De que me vale, porém, ou de que te vale a ti, boa amiga, esta assunção da nulidade da extensão da estrada compulsiva entre um eu e outro, se sempre foi e será um eu qualquer, e não um qualquer outro, a impor-se como primeira urgência deposta na balança onde se pese o mal que nos corroa em outrem?
Até breve, amiga.
(Em Guiães, aos 17 de Janeiro de 2010)

quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

GUIÃES, ENTRE A CIDADE E AS SERRAS QUE O EÇA CALCORREOU (IX)

Gosto de lá ir, de quando em quando. Ali estão todos, lado a lado, sem problemas de ter este ou aquele parceiro à ilharga, ainda que antes da presente aproximação nem tivesse sido muito sadio o relacionamento entre as partes. Justos ou injustos, injustiçados ou não porque em seu devido tempo, muitos velhos muito velhos, outros não tão velhos mas também já lá bem representados, e até donzéis e crianças. Todos eles, neste entretanto, com a mesmíssima idade.
Em paz suprema se irmanam ódios mais antigos que a antiguidade do mármore verdilhento pelo musgo, paixões pungidas ou emurchecidas antes do grito carnal, invejas e brios amachucados por inconvicção na réplica, sensacionais e menos sensacionais paradigmas de estoicismo consoante a directriz aproveitada, monstruosidades impunes e gestos de amor repelidos por falta de olhos de ver. Tudo por ali se imagina e acrescenta, ou se reduz e revivifica. E que ninguém se atreva a pôr em causa a infalibilidade de que um dia, remoto ou próximo, lá virá a cair e a transformar-se, com semelhante primor, em tema de zombaria ou de elevação aos astros. Nem a imaginação o logrará evitar.
Previstos para dar sombra na vereda até ao portão de entrada (que de saída é que ele nunca será), como imprescindíveis deponentes citados em julgamento a subentender no calendário, eis os crónicos ciprestes, erectos, majestáticos sem trono nem coroa ou ceptro de ouro a impor genuflexões e correlatas concupiscências a seus súbditos. Haverá por aí algum cemitério que os não tenha?
Gosto de ir até lá, de quando em quando. Pelo meu pé.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

GUIÃES, ENTRE A CIDADE E AS SERRAS QUE O EÇA CALCORREOU (VIII)

A neve veio, durante a madrugada, apresentar-se. Talvez pretendesse, qual irmã rica da outra de menos remedeio na vestimenta, não deixar os créditos por mãos alheias, como é habitual ir dizendo em situações semelhantes. E continua a cair, mortífera, porque associada à chuva e, por isso, àquele outro irmão de remotas aparições, o granizo. A fechar a procissão familiar, imperará sem altercações nem protestos o mano velho, o gelo, como tapete de carreiros ou de estradas, ou nos charcos da berma e nos riachos espontâneos e de imediato petrificados, ou ao transformar-se em vítreos pingentes de beirais e arvoredo, ou no ar e neste patético desespero de alguém irromper aos pinotes e a esfregar as mãos uma outra até aos ossos. Quando toca a rebate, nada a fazer, se aquilo que se ouve bater são os próprios dentes.
Que maravilha é, na verdade, olhar a neve e andar sobre ela, ouvir-lhe o brando rechinar impresso a cada passo, ou até pegar-lhe e senti-la a derreter-se ao calor ou a enrijar sob o aperto dos dedos. A mais terna e doce das maneiras de a ver, palpar, escutar, e até cheirar, contudo, é em fotografia ou em filme, ou na memória a que a demasia de anos já empreste condescendência. Há lá coisa mais sã que a luminosidade e o afago que o nosso sol granjeia a quem o ame e respeite?

GUIÃES, ENTRE A CIDADE E AS SERRAS QUE O EÇA CALCORREOU (VII)

Parente paupérrima da neve, embora próxima, talvez gémea falsa fora da graça e dos livros, também não deixará de ter o seu encanto, alva e leve, cristalina, mais ruim que benfazeja, a geada. Subsiste apenas até que o sol a persuada a abandonar as malignas pretensões de corrosão para outro dia. Que quanto sem ela adormeça se livre de acordar com a malvada espojada no mesmo leito. Mas dizem os velhos entendidos nesses contextos que a geada também tem virtudes. É proveitosa, por exemplo, porque impede as árvores e as plantações em geral, viciadas até então por temperaturas benévolas fora do tempo, de deitar folhas e flores com demasiada celeridade, como se a hora das invernias já lá fosse e os dias já se ataviassem para a apoteose primaveril. E também se proclama como vantajosa porque amansa nos cascos o vinho novo, dando-lhe enfim corpo e alma atestáveis nos estalos da língua. E terá ainda utilidade de grande monta, dizem as velhas entendidas noutros contextos de outra caldeação, porque consegue amarrar os velhos em casa muito mais tempo, acocorados sob a regência da lareira, sóbrios ou de penca pendente e a pingar no brasido, pouco lhes importará, às velhas, obrigadas a dormir com o que reste.
Útil será, será bela, a geada. Mas só ao longe, ou nem isso.

GUIÃES, ENTRE A CIDADE E AS SERRAS QUE O EÇA CALCORREOU (VI)

Outono é tempo de queda. Inexorável. E tudo cumpre o prescrito, não se sabe por quem, acorrendo à chamada proveniente das profundezas terrenas, e cai de qualquer maneira, sem pressa a mais nem detença a fingir ser por acaso o cumprimento da pena. Não apenas as folhas das árvores, ou algumas pétalas de flores tardias, ou até frutos a aliviar as ramadas com desmesura de produção, ou as tormentas temporãs sob a regência de quantas chuvas não vieram quando tão úteis seriam, ou os preços sob a máscara dos saldos, para que a ladroeira comerciante, que já os gregos equiparavam aos ladrões oficiais arrolados em tabela própria (de pilha-galinhas a banqueiros), não ganhe tanto mas ganhe e ainda se ponha a ganir de mão estendida à comiseração governante, esta sim, paradigma de ladroagem maior autenticada (quem nos dera que também não demore demasiado tempo a cair no charco da muita merda obrada entretanto).
As vinhas, ainda agora acabadas de parir, despem-se e lá se aprontam para de novo emprenhar, continuando o ciclo de que há notícia desde os caboucos bíblicos de maior longevidade. Nas cores predominantes, o vermelhão, que superara os verdes e os ocres, perde a graça e cede a passagem aos pigmentos terrosos, base de tudo. E a cor de cinza, pela mão das nuvens, altas e baixas, desde há muito prevalece onde o azul celeste de estival temperança já nem pelas saudades é lembrado. É de tormentosas tonalidades todo o espaço cósmico vislumbrável ao nível do chão, como se a vida se tivesse a si mesma escorraçado de cima do palco onde persista em representar-se.
Frio e chuva ao mesmo tempo, cá pelas zonas mais rasteiras, significa neve na serra. Pois que caia e pinte de branco a lonjura a que os olhos se sujeitem, se impotentes na contenda com o que de perto não vejam nem se melindrem por isso. Da linha do horizonte pouco importará a cor, mas antes branca que negra.

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

REVISITA MELODRAMÁTICA A UMA IDADE DE QUE NEM SAUDADES SOUBE GUARDAR

Tornei a vê-la, ontem, e a estar com ela. Fomos, durante todo o tempo em que tanto assim quisemos ser, as mesmas atoleimadas crianças de há cinquenta ou mais anos. Olhámo-nos, como se desse exacto modo, num desvairo, sempre nos tivéssemos olhado, e também nesse exacto olhar nos demos em recíproco, com volúpia e tudo. Mas como ignorar a assombração de nos sabermos acorrentados, que não um ao outro, e alento não termos, nem decerto a menor vontade, de arrogar e atacar as respectivas correntes, porque feitas de carne em tudo igual à nossa e de nós provinda tão sem culpa?
Pese embora a minha suspicaz imparcialidade, se obediente a valores adoptados por quem julga em causa própria, vi que continua linda: os mesmos olhos ridentes de uma verdura onde pastar apetece, a mesma boca miniatural de boneca a que nem falte falar, a mesma pele onde a alvura é testemunho de que as rugas virão longe da hora de fingir que lá não moram, as mesmas mãos tão alvoroçadas como a voz de que se almejam acessório, a mesma voz musical de menina cujas mãos é que serão tagarelas, e o mesmo corpo esbelto e desembaraçado, com tudo ainda em seu lugar, por não ter faltas nem demasias a pesar em olhos de outrem. Fazendo as contas bem feitas, que maravilha é estar vivo e ter o amor como atestado de que vale a pena viver. E que infelicidade é senti-lo tão ao alcance da mão, e reconhecê-lo tão longe, o amor, de nele perceber sequer um aceno solidário, uma promessa a nem supor como passível de ter asas, a fugaz mentira de um beijo perdurável por mais cinquenta ou mais anos. Nunca daquela boca, daqueles lábios de cereja a pedir dentes onde o meu rubor tem espelho, eu tive mais que o efémero simulacro em duplicado sobre as faces, como quem beija o ar e do ar obtém a resposta que alguém pelo ar enviou. E a doçura das palavras, claro, como eflúvio misericordioso para as úlceras, agasalho contra a frialdade nocturna nos becos, sustentáculo em desequilíbrios no percurso através da insanidade outorgada como defesa.
Pudesse eu fugir com ela, hoje, e fugiria. Quisesse ela repartir comigo esta nossa solidão acompanhada, desde sempre repartida à distância e porém aqui tão perto, e eu devolver-lhe-ia o firmamento por ambos soletrado numa ainda tenra meninice. Ou presenteá-la-ia com a outra face lunar, a nunca à vista, para que nela, só nós connosco, enfim nos consentíssemos o desatino da sofreguidão de reconquistar os nem sei bem quantos anos desperdiçados. Aí uns cinquenta, ou mais.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

GUIÃES, ENTRE A CIDADE E AS SERRAS QUE O EÇA CALCORREOU (V)

Passa um tractor na rua, calcetada e estreita e com robustos paredões de cada lado, e tudo aparenta estremecer. Até o ar se agasta e disso dá sinal nos cortinados. Fingindo ignorar o encontrão para trás com que o saudosismo retrógrado (igualzinho ao que acompanha os ponteiros do relógio) tem por costume denunciar-se, reconstruo na mente a paz pachorrenta dos carros de bois de outras eras, a chiadeira das rodas e os brados de simulada impaciência do camponês condutor, o resvalar sem susto das patorras desferradas no empedrado, aquele odor ímpar das bostas alijadas do alto sem parcimónia como bostas, a iniquidade pontual do aguilhão não simulada, a danação dos milhares de moscas trazida a reboque pela cauda, e sinto pena. Mas o tractor é veloz e já lá vai longe, levando o bramido das válvulas para onde lhe requeiram os serviços com celeridade e eficiência, enquanto a mansidão da parelha ruminante, apesar da poética passadista recomendada por um ou por outro sentido, nem ao fundo da rua, e a descer, teria chegado. Malhas que o império tece, como disse o vate dos heterónimos a propósito de outra conversa bisonha de que fazia parte um miúdo, um lenço e uma cigarreira breve. E não sei se na actual conjuntura não será mais caro um molho de erva, ou de palha, para os cornúpetos, que o carburante exigido pelo tractor.