http://photos1.blogger.com/blogger/4837/2733/1600/moi4.jpg
A minha foto
Nome:
Localização: Coimbra, Portugal

PINTOR, POETA E CANTOR, OU FAZEDOR DE COISAS LINDAS COM AS DUAS MÃOS E NÃO SÓ.

quarta-feira, 6 de dezembro de 2006

DA VANIDADE DE SE PENSAR MUITO NO QUE SÓ A OUTROS ACONTECE (ANTES DE NÓS)

Ao jeito de quem leia um quadro, remira o espelho e vê-se, por fora e por dentro: o rosto, outrora moreno sem excessos, está obscuro, entre cinzento e averdungado, ao evidenciar a mistura dos tons naturais da pigmentação da pele com os que a ruindade da maleita nele fabrica e deposita, pardacentos, enquanto lhe rói e destrói corpo e crença, hora a hora, sem apelo. O branco dos olhos, como se alguém, por indizível malfeitoria, lho colorisse, tornou-se amarelo de gema, mas incapaz de chocar e parir seja o que for que valha o tempo de vida. Já a magreza de esqueleto andante ainda em avanço, se outros sinais não houvesse, espelho nenhum lha desmentiria.
A realidade é inequívoca. Por muito que a utopia da esperança teime em pôr velas no altar a si própria, os dias vividos já são contados um a um, desde a dúvida matinal de estar acordado ou não, até ao sufoco nocturno de não saber se aquele sono terá fim de luz nos olhos com o alvor longínquo de nova manhã.
E depois, no rodízio dos pensamentos em aceleração contínua, várias são as frentes do incêndio íntimo a debelar, entre as quais se realça a do suplício imposto pela sensação de injustiça: cinquenta e dois anos não são anos que se tenham para se ter uma doença destas. Dobrado o cabo de meia viagem há tão pouco tempo ainda, e já se lhe vislumbra no horizonte a vastidão do horizonte em falta?
E a cobardia dos amigos, que pensar dela? Como mastigar e digerir a fuga de quantos eram tronco comum, eram projectos repartidos, eram a razão de ser de se não ser bicho, eram o dia a dia feito em rampa de ascensão ao lado de lá da lua sem tirar um pé do chão, eram o tempo consumido impresso em datas cujo trajecto ganhasse direito a registo nos mais dias a consumir? Com que dentes se sorri e se finge aceitar incontornáveis afazeres como inconvicta justificação, nunca desculpa, se se sabe ser a presciência de não haver palavras sem gume nem dor que à distância os mantém, à espreita, esperando a hora?
Qualquer espelho só nos mentirá enquanto o olharmos. Ou enquanto, para o olharmos, tivermos olhos e luz. À pedrada, apague-se a luz ou despedace-se o espelho. Morrer não dói mais que nascer. E deve doer bem menos que viver com a morte à vista, ali a dois ou três meses de dias contados e recontados, mal a manhã se entreabra, um por um.