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PINTOR, POETA E CANTOR, OU FAZEDOR DE COISAS LINDAS COM AS DUAS MÃOS E NÃO SÓ.

quinta-feira, 27 de março de 2008

JÁ NA RESSACA A EXPERIÊNCIA DE AUTÓPSIA AO VIVO SEM PONTA DE ANESTESIA

O tiro, disparado na noite da banda de lá do mar, ouviu-se por cá com mais nitidez que a que lá se fez ressoar em tímpanos ausentes, porque dormentes ou alheios a quem morra ou nasça. E sem deixar de doer à bruta, na caixa negra do peito, talvez nem doesse tanto assim por não ser já inesperado. De tantos mais feitos similares se lavrou a escritura histórica daquele bueiro entupido, paraíso de enxúndia e podridão de mãos dadas ao desplante. E que valor poderá ter mais tiro menos tiro em terra de néscios já armados desde o útero, afinal, ou onde a morte sempre se viu aproveitada e se converteu em matéria-prima, negócio, ofício, herança, lazer?
Aqui, onde a carne ainda se dói como doía, onde ainda não será ilícito chorar quem de fábrica igualzinha à nossa também foi produto, onde a instintiva casmurrice de sobreviver ainda tem estatuto mais valioso que o desperdício de viver tão-só, onde o arco-íris ainda se apresenta com sete cores e nenhuma delas é de plástico e néon, onde tudo pára e emudece à conta de se saber a quem exigir contas pela morte vinda nos ecos, aqui se descobriu como o ardor se transfigura em repentino pantanal nos olhos, aqui se assoou todo o estertor de ranho velho em nariz fungão por vício ou propensão congénita, aqui se arrepelaram e desgrenharam cãs sem que a dor pontual valesse a tamanho desbaste ceifeiro, aqui se morderam, remorderam, roeram, ruminaram nós de dedos com sabor a impotência contra a prepotência do império, aqui se revisitaram e acrescentaram e se riu de histórias já antes contadas mil vezes, aqui se aceitaram e agradeceram condolências e se cedeu à miséria acobardada de anuir à encomenda de missas por alma.
Era mentira, no entanto. Ninguém morreu. E não é que quase chegou a causar raiva a felicidade da não confirmação do feio evento?