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PINTOR, POETA E CANTOR, OU FAZEDOR DE COISAS LINDAS COM AS DUAS MÃOS E NÃO SÓ.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

COMO SE PÔS UMA MENINA PRENDADA NA PRENDA DESTE PAÍS CÁ DE CASA

No princípio, eram três, que por ali ficaram, sozinhos, à solta, quando a mãe, atropelada, morreu. Teriam então um mês de idade, ou nem isso. Breves dias depois da orfandade, também às mãos da velocidade assassina, um deles ficou na berma da vida sem que antes a tivesse vivido. Fazendo-se a subtracção, fácil, sobraram dois. Um e uma. Ou uma e um?
Entretanto, talvez porque o luto, pela mamã e pelo mano, os não entristecia tanto assim, aqueles dois não sossegavam um momento, de tal modo brincavam, pulavam, corriam, fingiam lutas raivosas, perseguições e caçadas, ou, numa expressão de clareza mais que muita, sobreviviam.
O esboço de casa onde pernoitavam, por amor de alguém que desde os primeiros ganidos de solidão sem culpa os amparou, resumia-se a um caixote de cartão canelado e velhas mantas a servir de enxerga, além dos recipientes com comida e água, todos os dias mudada. E eram muitos os contribuintes que ao local acorriam–um mínimo bosque e complementar matagal de silvas e lixo, no meio de arruamentos prontos a encher de betão e vidro em zona escolar–, de tal jeito conseguindo que a esperança de vida daquelas pobres crianças, ao abandono de si mesmas, atingisse um nível muito promissor.
A morte, no entanto, sempre andou nas redondezas e levou o mano da mana. Presume-se que, desta feita, por ter sido alvo do ataque de dois canzarrões vadios, decerto esfaimados, que por aquelas bandas apareceram, trazidos pelo cheiro. E assim ficou sozinha a menina, aterrorizada, não tendo já com quem correr, saltaricar, inventar brincadeiras, jogos, ilusões, senão a instintiva capacidade de fingir o olvido e ignorar o medo de ficar a sós no quarto escuro do mundo.
Ora, quando até seria lógico e de enaltecer que os protectores anónimos mais se empolgassem no acompanhamento a dar à órfã, pelo contrário, desapareceram quase todos. Só um deles se conservou fiel à causa e continuou a levar água, alimentos e ternura à desvalida, agora mais que nunca. Mas sempre a saltar à estrada e a cabriolar de contentamento quando ouvia e reconhecia, ao longe, o carro amigão que lá vinha.
Até que um dia, mês e meio depois, o carro chegou e dela não se viram quaisquer sinais. Talvez alguém a tivesse adoptado e instalado numa mais confortável moradia, que não aquela do silveirão onde nascera e vivera, desde a primeira hora. Talvez se deixasse convencer, por alguma matilha de vagabundos, e decidisse partir à aventura mundo afora. Ou talvez se ficasse pela margem da vida, tal como os irmãos e a mãe, morta por mandíbulas famintas ou pela criminosa utopia de voar sobre o asfalto. O carro, com o dono lá dentro, ainda por ali se viu a rondar, sem o menor resultado, durante uns dias.
Três semanas após o sumiço, quando dono e carro voltavam a casa, situada a vários quilómetros do bosque onde vivera a desaparecida, pareceu-lhes ver alguma coisa em perseguição de ambos: era ela, feliz e contente ao ver e reconhecer, tantos dias e noites depois, aquele carro e aquele dono, aqueles dois amigos, do peito, que já julgava perdidos. Por onde é que eles teriam andado este tempo todo?
Chama-se Lia, como a da Bíblia, filha primeira de Labão. Mas não se creia que Jacob algum esperaria tantas vezes sete anos pela outra mais nova, Raquel, se antes tivesse visto esta.