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PINTOR, POETA E CANTOR, OU FAZEDOR DE COISAS LINDAS COM AS DUAS MÃOS E NÃO SÓ.

segunda-feira, 20 de julho de 2009

PODE UM LABIRINTO PRINCIPIAR NUM BECO E TAMBÉM NÃO TER SAÍDA

Encontrei hoje, de manhã, muito cedo, o Pitrolino. Não sendo aquele epíteto nome de gente entre gente, só podia ser alcunha vinda do pai ou do avô, cujo ofício passaria pelo castigo de deambular de terra em terra, com a sua carroça e o seu burro, ou macho, ou cavalo, a vender de porta em porta alguns géneros de maior susceptibilidade no trato, como petróleo, óleos lubrificantes, produtos vários de limpeza, desde a lixívia aos sabões e a essa modernice dos detergentes líquidos e em pó, ou até azeite e demais untos alimentares de dúbia origem. Assim a fiscalização oficial, quase inexistente, não visse, que a trapaça, num ou noutro fluído oleaginoso para fins de índole diversa, também não lhes garantiria, avô ou pai, a independência. E a verdade é que nunca a fortuna, com essa e outras causas a considerar, transformou aquela família num farol paradigmático de como aforrar cobres peça a peça e revê-los convertidos em ouro, sem rezas nem mezinhas ou quaisquer fantasias de alquímica prestidigitação.
Qual caricatura sob ironia em barda do que a realidade cala ou omite em sua própria inquirição, o Pitrolino era apenas o mais pobre, entre os pobres que éramos todos, lá no beco. E tão pobre e tão triste como antes ele continua. E agora, ainda por cima, está velho. Perguntei-lhe que idade tinha, e ele mostrou-me o bilhete de identidade, como se já não estivesse muito certo de quantos anos teria. Ou como se eu fosse polícia, e ele um ladrão caçado em flagrante. Já dobrou, em Março, o cabo dos setenta —, apurou o detective, satisfeito com o resultado da investigação realizada, de acordo com o pressuposto. Ele era de facto o mais velho, não o maior, dos cachopos que naquele beco de trampa moravam, sobreviviam, insistiam em crescer sem que soubessem por quê. O Pitrolino, erva raquítica sem culpas nem onde, foi um dos que nunca de todo se despegaram do chão. E não é que lá se conserva, no beco, ainda atolado em trampa, embora se acredite que agora é mais social que física? O pivete, contudo, será igual.
Magérrimo, com os passos um nada atordoados, caminhava, devagar, em sentido contrário ao meu. E estacou ante a minha mão estendida e o verdadeiro nome dele, não a alcunha herdada do pai, pronunciado por mim. O riso entaramelou-se-lhe com as lágrimas e vincou-se em abraço de muitas décadas a fermentar, quando lhe dei a ver quem eu era, naquele tempo, em função desta adiposa, enrugada e encanecida evidência que ora em viagem me leva. Como é bom e rejuvenescedor encontrar quem connosco revisite lugares deitados ao abandono por via das contingências da vida, torne a dar passos dados de regresso a sítio algum, saiba os mesmos nomes guardados entre poeiras e teias de textura em tudo semelhante, repita passagens a repetir por nós ao nosso próprio ouvido, e até renove a dor de feridas velhas que hoje já nem são mais que cicatrizes, ou se revele conhecedor de intimidades então devassadas que ainda nos façam corar.
Teria ele já uns nove anos quando nasci. E tinha eu três anos quando daquele beco para outro não tão longe assim me levaram, vida acima ou vida abaixo, isso não sei. Nunca soube. Mas sei que diante dele me apresento muito menos consumido que ele estaria sem os nove anos de diferença a sobrecarregar. E sei, para meu pasmo, que de tudo me lembro, com excepção do que esqueci.
Obrigado, António, por me permitires o gozo de alinhavar este texto em tua honra, porque pude reencontrar-te ainda vivo. Ou será só em minha homenagem e para meu gáudio, nem mais, como é costume?