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PINTOR, POETA E CANTOR, OU FAZEDOR DE COISAS LINDAS COM AS DUAS MÃOS E NÃO SÓ.

sexta-feira, 13 de março de 2009

ESTADO DE SÍTIO EM AGENDA COM FALTA DE LINHAS EM BRANCO

Velhice é quando começamos a encontrar ruas cujo nome é de gente com quem tenhamos convivido, trabalhado, confraternizado, ouvido coisas bonitas de ouvir, ou até chalaceado acerca da imortalidade da arte, que não das mãos e dos olhos de quem com ela se deite e a leve a parir. Nome de gente vária, portanto: poetas, jornalistas, urdidores de intrigas, companheiros de armas em presunção e em projectos, ou arautos da estética oficial, vulgo mercadores do gesto íntimo que faz brotar água no deserto onde apenas sobreviva a imbecilidade. Que se foda a toponímia e aqueles a quem ela faça inchar. Que se forniquem quaisquer preitos só obrados a título póstumo —, dir-nos-emos a nós mesmos, enquanto seguidores do credo e prossecutores na senda da não cedência ao silêncio acomodatício, diante de injustiças pontuais na atribuição dos encómios, que em placas de mármore ou azulejo se transformarão e logo farão jus a envelhecer quem passe.
Velhice é já nem sorrir das paixonetas de antanho, ao reencontrá-las nas palermices escritas e sofridas, com que raiva e com que dor, a seu mando; ao perscrutá-las através de fotografias meio esmaecidas pela corrosão da dúvida, e bem assim pela cegueira das dioptrias vedoras, em crescendo; e ao sepultá-las de vez na cova extrema de um desdém sem argumentos, sem pena, ou onde outras já nem recordadas desde há muito apodrecerão. E pode ser mesmo a renúncia ao destemor de sentir saudades daquilo que nem em pensamento ousámos ter algum dia, fosse qual fosse a idade da dita ousadia em punho.
Velhice é quando não se é já capaz de atapetar as insónias com ideias felizes, mas, pelo contrário, vê-las vencer o pleito em que, contra elas, sejamos autores, porque vítimas de dolo, e ao mesmo tempo arguidos confessos no crime de que nos pretendamos queixosos. Onde e como ter acesso à felicidade atapetável na imensidão de uma noite toda ela puxada à sirga, e arrastada pela manhã acima, tarde adiante e noites e noites após que como uma noite só se nos imponham? E dormir de pé e a andar, o que virá a ser senão canície temporã, quando o motivo último dessa patética espécie de sonambulismo nunca foi mais que a recorrência de um comboio de insónias lançado a todo o vapor, serra acima ou serra abaixo, sem paragem que não seja na estação final de embarque para os obscuros abismos de céu nenhum, que o mesmo é dizer do céu a metro e meio pela terra dentro?
Velhice é fazer contas de subtrair sem necessidade de prova para que se creiam certas. Ou de somar, mas em que de imediato se estabelece ser negativo o resultado. Ou de dividir, adivinhando-se a nulidade do quociente ante a similitude entre dividendo e divisor. Quanto ao acto utópico da multiplicação, só se for a da rarefacção capilar em avanço pelo retorno ao útero do viço, sendo o apuro em tudo equivalente ao obtido pela implicância de matar a sede com sal. E quando os dedos de uma só mão parecem mais que bastantes para ajudar à contagem das horas de sol na eira antes do mangual redutor a palha e pó, se há muito já vem escasseando o grão na moenda?
Velhice é persistir em ver as horas no pulso, ou na algibeira do colete, ou no despertador dos ressonos, ou numa qualquer torre de igreja ao passar perto, sem antes colocar as cangalhas no natural sustentáculo de nariz e orelhas; ou dar ênfase a uma impostura de má-criação, no eléctrico, simulando a leitura por cima do ombro dos jornais alheios; ou, no mesmo transporte ou noutros, procurar contactos ilícitos com carnes tenras, e depois falsear a evidência de tremuras e decrepitude para escapar à estalada punitiva em proporção.
Velhice é o castigo de espreitar os pés ao fundo da cama, longínquos, e sabê-los cada vez mais perto de não estarem lá.