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PINTOR, POETA E CANTOR, OU FAZEDOR DE COISAS LINDAS COM AS DUAS MÃOS E NÃO SÓ.

segunda-feira, 17 de abril de 2006

«NOSCE TE IPSUM»



"To be or not to be, that is the question"
- Shakespeare («Hamlet» - cena IV do III acto)

"On ne voit bien qu'avec le coeur. L'essentiel est invisible pour les yeux"
- Saint-Exupéry («Le Petit Prince» - quadro XXI)


Ter ou não ter talento, eis a questão. Ser ou não ser detentor dessa grácil labareda que em nós viva e nos dê vida. Voar ou não voar, mesmo com asas de estopa e cordéis atados a dente, através de um cosmos cuja amplitude se resuma ao nível das ervas. Crer ou não crer na impulsão que o juvenil gigantismo nos prometer à partida, embora cientes das nuvens emboscadas sobre o percurso dos mais anos a vencer. Vencer ou não vencer, ir ou não além da berma fatídica que desde a nascença sabemos estar algures à nossa espera, a qualquer hora e afinal em toda a parte, perto ou longe de a pressupormos longe ou perto.

E quando o silêncio é daqueles de ensurdecer os olhos? E quando as mãos, cegas de todo, se procuram, se tacteiam uma à outra e nada dizem, se nada acrescentariam ao nada que nunca antes terão dito, que nem teriam mesmo a dizer? Que nos cumprirá, por espontânea e premente solidariedade, dizer por elas? E que lhes cumprirá, a elas, quando ainda aquém da voz audível pelos olhos, dizer por nós ou por outrem? E dizer o quê e a quem, enquanto houver mãos sem vista e olhos incapazes de dar a escutar os gestos?

Dizia Borges – um cego cuja bengala mental veria mais que muitos videntes perante a luz dele encandeados – que "o importante é a imortalidade. Tal imortalidade atinge-se através das obras, através da memória que nos outros deixarmos". Só é pena, dir-vos-á esta efectiva realidade de mortais, que enquanto vivos tenhamos também, além de olhos e coração e emoções ou sentimentos em coutada privativa, algo que se chama estômago, com indeclináveis carências a suprir no quotidiano, e pele com frio bastante e pudor só quanto baste, e pés nascidos descalços mas que o rigor de mil gumes nos veio habituando a esconder entre sapatos, e até outros vícios menores, resultantes do transtorno dos tais olhos quando escancarados de lés a lés, do dito coração enquanto ao rubro e movido a compasso da contemporânea mentira de estar vivo entre viventes, ou do mais que os supracitados sentimentos e emoções – animais em via de extinção e acelerada – sempre farão encarar de igual maneira como quotidianas carências em supressão com carácter de urgência.

Vinte e cinco anos depois, que me resta daquele fedelho baixote, moreno, de olhar predador em contínua pose e mãos nos bolsos nervosos, que se atreveu a galgar a cerca e à luz do dia se intrometeu neste traiçoeiro pomar de nunca assumidas presunções, que se mostrou pleno de ideais generosos e então se sentiria capaz de salvar o mundo, fosse qual fosse a envergadura dos mostrengos a defrontar? Que ficou em mim desse cachopo quase imberbe, pobretanas, desinquieto, inconformado, se ainda aquém do mergulho nas falésias onde a ilusão se despedaça, onde o sonho de sonhar a vida inteira morre às mãos de mercenários e de seus pares iconoclastas, onde o ouro impõe padrões de conquista e faz erguer pelourinhos para pública amostragem dos sentenciados à sua própria mudez?

Era Fevereiro e era a crença, só segredada, de que Abril já vinha aí, que não tardaria nada a irromper, de madrugada, entre as trevas genuflexas e submissas a sua eminência, o bastão. Era um sol que sorridente se anunciava. Era um grito que se diria tão rijo, quão rijas se arrogassem as muralhas a abater. E era a ânsia de quem só em si mesmo acreditava, fosse qual fosse a tamanhura das avantesmas a enfrentar. Quanto à arte e ao tal talento exposto na questão primeira, quanto àquela labareda grácil que nos dá vida e vive em nós, talvez não – admitamos –, talvez ainda não fosse. Tê-lo-á sido algum dia nestes vinte e cinco anos?

(Escrito em Coimbra e aos 6/11/1999 para o catálogo da Exposição então realizada na Casa Municipal da Cultura de Coimbra)